A imprensa cyborg.

É noite na campina. Bafo quente e aquele silêncio. Medo dessa escuridão toda. Medo de quê? Medo de ver o que não se quer ver. Mas, se não se pode ver, tal a escuridão, qual é o medo? Olhos cerrados não vêem e tampouco dão medo. Mas esse pensar dá mais medo ainda. Deixa pra lá.

Eis que sobe da ravina um, dois, três, muitos zumbidos. Mais medo. Medo de ouvir sem ver. Mas por quê? Deixa pra lá. E de repente a campina acende fugaz. Um casebre pisca e apaga. Uma moita. Pisca e apaga. A estrada e o casebre. Piscam e apagam. A ravina e a moita. Piscam e apagam. O casebre, a estrada, a moita e eu. Piscamos e apagamos. E o medo? O medo também, apaga e pisca. Meu medo a mercê das bundas fluorescentes dos vagalumes.

E é dessas luzes fugidias que insistimos em retratar nosso ambiente, nossa história. Como se o piscar fosse capaz de descrever todo o horizonte, as nuvens, o campo, o ritmo do andar, o pulso do vento, o medo.

Certa imprensa, a grande imprensa, a imprensa de massa trabalha assim, iluminando aqui e ali. Fatos, acontecimentos, personagens. Números e mais números. E vamos nos norteando nestes clarões. Quase às apalpadelas.

Assim, quando esta imprensa ilumina o casebre e a estrada, está ocultando o precipício que está diante dos meus pés. Quando ela está acendendo a moita, não ilumina a tempestade que ocupa todo o céu.

Pois ela não sabe fazer história. Tão somente documenta-a com seus fragmentos factuais, pequenos clarões em um todo vago e confuso.

Tampouco sabe contar estórias. A pressa é tanta, a urgência do furo é tal, que o estilo escorrega. Fatos e números não apaixonam.

Então, o que tristemente lemos e vemos por aí é uma imprensa monossilábica, almanaque. O leitor, contaminado, tem sua atenção e capacidade de pensar adormecida. E quanto mais adormecido está, mais permeável. Daí, é fácil fazer malabarismos e prestidigitação com o seu senso crítico. Afinal de contas, números não se discutem. Mas números são apenas vagalumes.

E agora, neste mundo que aposentou o mitológico em favor do bitológico, neste mundo que vive no limite do tempo e do espaço, estes pequenos clarões não são mais capazes de aplacar o medo do escuro. E na correria do fechamento, agora medido em minutos e não mais em dias, aleija-se a análise, avacalha-se o estilo. E com isso, perde-se a capacidade de entender, e o prazer de sentir, o todo.

Notícia, furo, dados, pesquisas, personagens. Commodities em liquidação. Na Internet notícia não vale nada porque não tem autor. Na Internet furo não existe porque todos chupam. Na Internet, dados não têm peso porquê não são exclusivos.

A imprensa tradicional não está ameaçada pela membrana digital porque os veículos físicos são obsoletos. Ela está ameaçada porque está perdendo a capacidade de expressar o todo. Está ameaçada porque o repórter, o jornalista, o editor está num processo compulsivo de autocastração. Eles se cobram daquilo que não tem mais valor. Capam-se da intuição, da crítica, da análise.

Quais seriam os papeis da mídia digital e da física neste novo cenário? Com quem ficaria a análise e quem se ocuparia dos fatos? Mas sequer vemos essa preocupação atravessar a grande imprensa. Tampouco na Internet. Está tudo igual. Fatos, fatos e fatos.

Acho que trocaram o nervo ótico pelo microscópio.

Em um mundo altamente técnico e científico, ganha seus títulos de nobreza aquele que for capaz de quantificar. E isso para todos e tudo. Números e estatísticas. Mas qual é a essência da imprensa? Afinal de contas, com o que ela lida? Com a observação, com a criação, com a inteligência muito antes do vômito de números e estatísticas. Observar, escrever e falar virou ciência exata agora?

E daí meu medo. Meu medo de ver um todo que pisca timidamente, iluminado ao bel prazer e racionalidade de vagalumes . Lumes vagos.

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