Hermes, Deus da cibercoisa.

Na encruzilhada tinha um montinho de pedra. Tropeiros e mercadores de todos os matizes reverenciavam aquele monumento insólito. E a cada viajante, uma pedra a mais, uma nova prece.

Assim desperta Hermes, filho de Zeus. Deus da sinapse, da conexão, da comunicação.

Ainda cheirando a hypoglós, seus calcanhares alados escapam do cueiro. O rebento encontra então uma tartaruga de barriga para cima. Hermes destripa a bicha, estica bexigas de boi na parte côncava do casco e sai tocando sua lira, inventada pela primeira vez.

Assim inicia-se Hermes, irmão de Apolo. Símbolo da inteligência realizadora.

Vagando pelas montanhas, o baby encontra o rebanho de seu irmão e resolve sequestrá-lo, roubá-lo. Hermes mata meio plantel, tripudia dos nobres animais e se estica ao relento para desfrutar de sua trapaça sanguinária.

Assim cresce Hermes, pai de Pan. Deus dos ladrões, dos corruptos, dos pervertidos.

Apolo, enfurecido pelo atrevimento, recorre à justiça paterna. Zeus se esborracha de tanto rir quando Hermes, fingindo inocência, presenteia seu irmão de sua invenção réptil, louvando-lhe os dotes de artista. O Deus do sol, que é pavão, desmancha-se todo e perdoa.

Assim aplica Hermes, filho da ninfa Maia. Deus da palavra que penetra e seduz. Deus da lisonja.

Ele é essa divindade ambígüa, matreira, rápida e convincente. Hermes é o Deus da cibercoisa.

O que são relacionamentos virtuais? O que caracteriza o contato humano através do metamundo digital?

Quando falo com Glorinha, minha e-friend, chamo-me John e não sou esse rabugento, exigente, egocêntrico Adônis. Não sou essa carcaça insegura e desfocada. Tampouco preciso da máscara de bom mocinho que o convívio social me obriga a travestir. Sou todo flores e pieguices. Sou super-herói compreensivo. Amante libidinoso. Louco e tarado. Sou o que gostaria de ser. Aquele que não se assume. O lobo da estepe. O pai da horda selvagem.

E Glorinha, de sofrida Amélia não tem nada. Responde aos meus pulsos, se finge de Georges Sand, de Madame Georgette, da mãe de Gap, de Gisela Rao. Delícias correspondidas.

Porque Hermes também simboliza as múltiplas leituras das mensagens no espírito das pessoas, todas igualmente convencidas que as entenderam bem. Hermes é o Deus do Hermético e da Hermenêutica. Claro e oba!
Tudo isso é a cibercoisa, o reino supremo de Hermes, o no men’s land das faces ocultas, mas não menos verdadeiras que as aparentes. Não menos reais nem mais virtuais.

E desse reencontro, desse divã acéfalo que joga Lacan e seus discípulos pernósticos nos quintos dos infernos, nós nos sentimos um pouco mais livres, e mais inofensivos também. Mais próximos do divino, quem sabe.
Porque Hermes também é o Deus do mistério e da arte de decifrar, aquele que pega na mão dos humanos e nos conduz para o outro lado do Styx.
Relacionamentos virtuais são assim. Verdadeiros porque ocultos. E o perigo não está em confundir Adônis com John e Glorinha com Georgette, mas, sim, não saber conviver com John e comer Georgette. O perigo está em castrar John e mal digerir Georgette.

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