Licença para nada.

Sartre procura Beauvoir. Motivo para me escrever: não precisa de motivo.”

Um amigo recebeu um email. Ainda estou arrepiado, emocionado, morrendo de inveja. Ponha o “Ne me quittes pas” cantado pela Nina Simone para tocar e curta. Não vou falar mais nada para não estragar. Taí:

“A culpa é sua, que disse que não precisava de motivo para lhe escrever!

Não!… eu não sou a Beauvoir. Nem francesa. E não tenho jeito para
grandes filosofias.Da Beauvoir só tenho mesmo os dois volumes de “O Segundo Sexo” ali na prateleira por cima da cama, mesmo ao pé dos CDs (é que gosto de pôr música quando estou deitada).

E eis que estou numa daquelas noites assim meio… sei lá… sabes
quando a gente sente assim… meio coiso?… não sei explicar. Vai daí que disse um eu para o meu outro eu: “Já que estou online (eu tinha acabado de enviar um email) vou dar uma volta por aqui” – subentenda-se que este meu “aqui” é “todo o universo cibernético”.

Fui então ver os meus emails. Uns antigos. Descobri um que nunca tinha lido… que coisa engraçada tem este mundo dos PCs. Nesse email estava um link para o uol de amigos. Abri… e no meio de todos aqueles “louros musculosos, inteligentes carinhosos, lindos mas carentes, meigos mas muito homens, anjos mas diabos na cama, etc, etc, dei de caras com um tal de Sartre que simplesmente procura uma Beauvoir. E a seguir deixa um daqueles sorrisos que mata qualquer filósofa francesa, feminista ou não.

Repito: não sou francesa, não me chamo Simone e não sou filósofa. Sou feminista mas nunca queimei soutiens em praça pública. Talvez porque me façam falta para uso próprio. Ou talvez porque seja estupidamente caro um soutien bom cá em Portugal.

Pois, pois, pá…. sou portuguesa, mas não com certeza (é que não tenho certezas de nada na vida). E também não tenho bigode (sou já daquela nova geração que saiu à mãe 😉

E nem sequer procuro nenhum Sartre (já tenho um que me dá dor de cabeça suficiente 😉

Porque te escrevo então se não preencho nenhuma das tuas “exigências”?

Ora…e lá se precisa de motivo para escrever a alguém que não se
conhece?… Tu mesmo disseste que não precisava! O culpado és tu!

(hm… acho que já ganhei confiança contigo. Prova disso é que comecei esta carta tratando-te por “você” – que para nós é um tratamento mais formal, ao contrário daí – e já vou no “tu” – que corresponde ao vosso “você”. Eta, linguinha que mais parece um código de guerra que uma língua de vários países!

Bem… voltando às razões da existência desta carta: Não faço a mínima idéia quais sejam! Acho que estou simplesmente de vontade de escrever a alguém que não me conhece de lado nenhum e que eu nunca vi mais gordo.

A verdade é que não tenho nenhum problema em especial que precise
desabafar, não tenho nenhuma tara por desconhecidos cibernéticos, não sou nenhuma tarada que marca encontros com homens desprotegidos para os matar e lhes arrancar a pele, não tenho nenhuma carência maior que a carência normal da qual sofre o resto do mundo, incluíndo tu; não sou nenhuma psicóloga a fazer um estudo de amizades na net; não sou nenhum homem doidão a fazer-me
passar por mulher afim de conseguir bunda; não procuro sarilhos; não estou vendendo nada, nem emprestando; não sou a mulher mais linda do mundo, tratada como se fosse a mais feia; não tenho nenhum site com fotos minhas onde mando as pessoas irem e, isto sim, com certeza, não estou procurando namorado.

Para que não haja confusão é bom que uma coisa fique assente: namorado já eu tenho! E de cibernético ele não tem nada. É carnal como o mais carnal dos bifes do lombo!… nham!

Simplesmente tive vontade de escrever a um brasileiro, a um que pôs um anúncio engraçado, procurando uma das minhas “idolas”.

Se algum dia encontrares a tal Beauvoir, apresenta-ma que eu gostaria muito de a conhecer.

Deves estar a achar-me completamente doida, não?

E tens toda a razão para achar tal. Tenho a dose de loucura suficiente
para fazer muitas das coisas que me dá na gana. E hoje deu-me na gana escrever-te.

Sobre mim há pouca coisa a dizer…. hm…. deixa cá ver…. (eu
pensando no que poderia dizer sobre mim)… nasci em ano de bom vinho: 69.

De vinhos gosto do Madeira. Doce.

Gosto de música. Mas quem não gosta? – Olhando ali para a tal
prateleira dos CDs, vejo, entre muitos outros, os seguintes autores: ZecaBaleiro, Nick Cave, Caetano Veloso, Tom – Jobim e Waits, Chico Buarque, Cássia Eller (chuinf…), Sérgio Godinho, Ella Fitzgerald, Zeca Pagodinho; Edith Piaf, Lisa Ekdahl, Rita Ribeiro e os “Lhubé” (um conjunto de pop music russo).

Gosto de jazz e de blues. Sim… tenho a certeza que eu nasci numa
linda noite de Primavera, nesta linda e amena cidade de Lisboa (neste
hemisfério, Maio é o mês por excelência da primavera) no preciso momento em que no rádio soava o inconfundível vozeirão de Dinah Washington.

E adoro Bossa… seja da nova ou da velha. E Samba. E fado.

Da clássica gosto de ouvir quando não quero ouvir mais nada.

Não sou uma leitora exemplar. Deveria ter lido muitos mais livros dos
que já li até hoje. E plantado mais árvores. Mas dos que li, o da minha vida é, até à data, o “Levantado do Chão” de José Saramago.

Dos seus livros, Sr. Sartre, tanto quanto me recordo, só li “As
Moscas”. Não me lembro se gostei ou não. Só me lembro que evocava um mito grego qualquer e que tinha um tipo que era constantemente sobrevoado por um bando de moscas. É o que faz obrigarem-nos a ler livros só por causa do programa escolar. (as moscas não andam em bandos, eu sei, mas em filosofia tudo é permitido, até alcateias de peixes, varas de abelhas e enxames de porcos).

Gosto de cinema. Fiz dele o meu estudo.

Gosto do riso dos outros e de ouvir o meu próprio.

Gosto de amendoins, de batata frita, de uvas, de azeitonas recheada e
de tudo o que seja cozinhado com cogumelos. Não gosto de ervilhas.

Gosto de nadar. Gosto do mar. Às vezes vou lá para o Cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa, aquele pedacito de terra ao qual Camões se refere como “aqui, onde a Terra acaba e o Mar começa…”. Mesmo agora que já sabemos que nada começa nem acaba ali, gosto de ir ver o vermelho do sol a deixar-nos ao fim de mais um dia, espelhado naquele infinito de água azul. O mar parece-me mais infinito que o Universo.

Aliás… acho que essa é uma daquelas coisa que mais complicação me provocam nesta cabecinha: o fato de não conseguir imaginar o infinito do Universo deixa-me possessa! Faz a experiência – fecha os olhos e tenta imaginar o infinito do Universo. Num ponto qualquer vais ser levado a pôr um fim no infinito. A nossa mente é pequena demais para o infinito. Não é?… Em compensação, se a alma não fôr pequena, tudo valerá a pena. Até mesmo esta carta que só não é ridícula porque não é de amor.

Sim… e é claro que gosto do Pessoa!

Se quiseres, escreve-me. Se não quiseres, não escrevas. Tudo vale a
pena 🙂

Ah… e o meu nome é XXX. Prazer.”

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