Internet mata.

Fui ao médico fazer um check-up. Coisas de quase velho. Exames mil, aquela chatice. O resultado era endereçado ao médico, mas, óbvio, abri antes da consulta. Li no carro, às pressas. Sem entender patavina, a primeira linha era terrível e vaticinava: um câncer horroroso no fígado. O trânsito estava terrível, e meu testamento já estava pronto quando cheguei em casa. Meu piano, meu cachorro, meus livros, já estava tudo etiquetado. Será que seis meses é o suficiente para conhecer a Índia e a China? Será que nesse caso dá pra sacar o fundo de garantia? Choro com todos ou fico na minha e sofro um adeus romântico?

Mas eu precisava saber de tudo. Talvez ainda tivesse um ano de vida. Um ano para aprender uma partita de Bach? Acho que dá. Um ano, comendo chocolate sem parar: azar, o caixão vai ficar pesado. Preciso comprar um notebook com bateria atômica: vou escrever um romance de mil páginas no Uzbequistão.

Como um raio, fui até o computador, catando um pote de geléia no caminho. Aquela supercalórica que ganhei anos atrás. Se tiver estragada, paciência: “Morreu de tanto comer geléia”.

Estava lá: uma universidade na Espanha havia feito uma pesquisa séria, tinha que ser séria, claro: em 34% dos casos era batata, o cara morria. Mas o hospital militar de Indiana era mais categórico: não adianta operar, é morte lenta e sofrida. A noite foi excitante. Fui a um chat americano e joguei a pergunta: “Alguém aí sabe o que é o que tenho?” Um cara respondeu que a mãe tinha isso. Perguntei mais, detalhes, choramos juntos, acabamos bons amigos, prometi meus CDs de Bach pra ele. A noite foi longa. Comecei a escrever um e-mail coletivo. Até que ficou bacana. Gozado até. Vai circular pela Internet como um SPAM abençoado. Uma corrente de fé na vida. Preciso escrever a todos que amei. Como Napoleão, “Quero morrer no meio de todos que amei e que amo tanto”. Bonito. Vão chorar pacas.

Amanheceu. Não fui à academia, nem fiz a barba. O dia transcorreu penoso. O fígado, quem diria, logo eu que não bebo!

Consulta às 15 h: cheguei às 14 h, sorridente, conformado, com aquela luz dos predestinados.

– Então, tá tudo legal aqui.
– Tudo legal, (O cara é otimista, saco!)
– Coração de atleta, hein?
– Atleta! (Quem sabe um trekking no Nepal, boa.)
– Você não abusa da alimentação, aparentemente.
– Não, claro que não (A geléia, ainda sobrou geléia de amora?)
– Muito bom. Volte aqui em seis meses.
– Muito bom? Está muito bom? (OK, eu sabia que tinha um ano, e daí?)
– É, seus exames estão ótimos.
– Mas, doutor, e o fígado (Será que ele não viu? Que cara frio!)
– O fígado, o que tem o fígado?
– É…esse troço aí, na primeira linha?
– Ah, isso, é normal.
– Normal? Mas e a pesquisa da universidade de Valência? E a do Hospital Militar de Indiana? Eu sou forte, doutor, pode falar.
– ???
– Estou pronto. Operamos ou não?
– ???
– O Senhor acho que eu tenho seis meses ou um ano?
– ???
– Será que não seria interessante uma outra opinião?
– ???
– Eu pesquisei, doutor…
– Pesquisou, é?
– Sim, sim, eu não resisti, fui indiscreto, abri o exame.
– Na Internet?
– É, claro, a universidade de Valência, o Hospital Militar de Indiana…

O doutor caiu numa gargalhada retumbante, me serviu café, me deixou fumar, me deu um chocolate e marcou a próxima consulta. Eu, mudo, escandalosamente envergonhado, absurdamente desapontado e terrivelmente vivo.

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