A Jiboía

Para Tibo

Era só uma folhinha dependurada em um caule pequeno. Foi arrancada pela roda de um carro, estacionado por uma pessoa ruim de manobra. Por muitos quilômetros, ela ficou enroscada entre a calota e o pneu do carro. Rodando, rodando, rodando, vendo o mundo como ele é, redondo e girando.

Algumas horas mais tarde, ela caiu na sarjeta escura de uma rua deserta. Ficou ali, resistindo com as derradeiras gotas de seiva que lhe restavam. Até que a superfície emborrachada de uma sola de sapato veio grudar-lhe o caule. Apanhou bastante com a compressão ritmada contra o asfalto, até ser arremessada no canteiro de uma casa.

Era noite. Lua em quarto-crescente. E lá ficou a folhinha, tímidamente recolhida, pulsando lentamente.

Na manhã seguinte, um pequeno raio de sol acariciou lentamente a terra. A folhinha molhada de orvalho, ainda estava viva. Um gota lentamente deslizou-lhe por sobre a superfície, até chegar no caule que se encontrava a poucos milímetros de um solo terroso. A gota espreguiçou-se lentamente entre a extremidade do caule e a terra. E, no momento exato de seu contato simultâneo com a terra, um mecanismo secreto operou. A folhinha sentiu um ligeiro pulsar em seus veios. Outra gota e outro pulsar. No terceiro deslize de orvalho, uma gotona se formou entre o pé frágil e a terra. Outras gotas se sucederam até formar um amontoado de terra lamacenta.

Um dia passou, e a folhinha amanheceu mais verde, mais reluzente, mais viva.

No terceiro dia, por mais um reflexo incontido, da extremidade inferior do caule, um braço esbranquiçado firmou-se no montículo.

Assim, renasceu Jibóia. A cada dia, novas pequenas raízes iam penetrando na terra, cada vez mais fundo.

Um belo dia, um pequeno e diminuto broto se juntou à única e combalida folhinha. Ela não tinha mais do que metade de meia polegada. Rapidamente, os reflexos da natureza secreta das Jibóias entraram em funcionamento, e a folhinha abriu-se, delicada e clara.

Mais manhãs, mais tardes, mais noites se sucederam, e Jibóia estava agora com várias folhas, viçosas, exuberantes. Não havia mais traços da primeira. Ela havia caído, cansada de guerra, numa bela tarde cheia de vento.

As estações passaram, os anos passaram. Muitos anos.

Quem poderia reconhecer naquela frondosa estola que cobria a fronte de Ipê aquela folhinha, trazida pelo acaso de manobras barbeiras e pisadas aleatórias?

Ipê estava em flor naquele mês de agosto amarelando a bruma da manhã.

Mais manhãs de agosto passaram-se. Mais manhãs de setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho.

E agosto novamente chegou. Mas desta vez, algo estava estranho na rua da Memória. Ninguém sabia ao certo o que acontecera. A manhã estava lá, como todas as manhãs, sim, é certo. No entanto, o ar estava cinzento.  Mais manhãs de agosto transcorreram. Cinzas. Não houve uma único sininho amarelo durante o mês inteiro. Apenas uma escandalosa cabeleira verde a embrulhar os troncos e galhos de Ipê. Folhas imensas, lascivas folhas de Jibóia.

Ipê perdera a hora, pensou Menininha, cuja janela desbruçava-se sobre o jardim.

E o tempo passou.

Ipê nunca mais sorriu para o mês de agosto. Meninha cresceu e foi ver o mundo como ele é, para além de sua janela debruçada, para além do jardim, para além de Jibóia. Jibóia também cresceu e foi ver o céu como ele é, para além da janela, para além do jardim, para além de Ipê.

Ipê morreu numa seca tarde de maio. Chovia em dezembro, quando Jibóia morreu. De saudade de Menininha. De saudade de Ipê.

Era só uma sementinha, colada no calcanhar de um pardal. Por muitas nuvens úmidas, lá ficou, agarrada e inerte. Voando, voando, voando e vendo o mundo como ele é.

O secreto mundo dos Homens, das Jibóias e dos Ipês-Amarelos.

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