Dormir no ar

Acordei. Calor. Chuva. Pouco a fazer. Nada a fazer. Dia ruim. Melhor ficar na cama. Não sair. Não brincar. Dormir.

Uma avião cor-de-rosa fura o chantili. É um bolo enorme em forma de arranha-céu. Muita gente conhecida comemora um aniversário. Mas que coisa, não me lembro dos nomes! Uma pessoa gargalha muito alto, rodopiando numa cadeira giratória. Outra, dança cadenceando as ancas ao ritmo dos solavancos do riso.

Ainda chove. Ninguém na casa. Que bafo! De bruços, agora.

Uma enorme mandala de pedra vai furando o céu. Ao passar, espalha no ar brigadeiros com formas variadas. Galinha, coelho, Papai Noel, carro de bombeiro. Aqui embaixo, o povo está se acotovelando de boca aberta, para comer os doces que caem. Mas não consigo alcançar. Aquele, aquele lá! Uma boca enorme de pelicano se abre por cima e engole o brigadeiro. Talvez se eu rastejasse até aquela clareira. Tem pouca gente lá. Não me mexo direito. Muitos pés pisando nas minhas mãos. Quero acordar. Sair do sufoco.

Saio ou não saio da cama? Mais uns minutos. Talvez outra viagem. Limpar a imagem. Dormir mais.

Está ventando muito, na beira do canal. A água esverdeada reflete os telhados intrincados. É uma imagem opaca e difusa que se movimenta para os lados. Que sensação boa. Uma gôndola acena de longe e avança rapidamente em sua direção. Quando ela chegar, é só dar um pulinho por cima da mureta. O que fazer com a cesta de vime? Acho que deve ser levada. Tem salame e ovo duro. Chocolate, será que o chocolate veio? Não dá tempo de ver: o barco já chegou. Até que ele é bem grande. Tem uma enorme carranca na frente. Ela parece de carne, osso e de sorriso acolhedor. Delicia estar aqui. O vento é úmido, e o sol lambe o convés molhado. As almofadas são profundas; os tapetes, coloridos, macios. E, de todos os lados, desfilam casas carcomidas, palácios estreitos, igrejas trancadas. A brisa abraça a praça. Muito adeus jogado ao mar. O oceano se abre à frente, para acolher o piquenique náutico. A cesta se abriu. Colares, brincos, anéis de jade espalham-se no ar cobrindo as velas de brilho e cor. Quem comeu o meu salame? Não faz mal, vou dançar com a carranca e flutuar por cima do espelho abismal. Mas como é fácil voar! Um empurrão para cima, mãos atrás da nuca, é só fechar os olhos. A cidade flutuante partiu à deriva, e a gôndola mágica evaporou-se atrás da curva do céu. Como é bom voar.

Sonhei. Uma nau de chantili a deslizar no ar. A chuva parou.
O salame. Que fome! Melhor levantar.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook