Engolindo pizza

Eu queria dizer algo, mas não sei qual é o algo que quero dizer.

Falar quem sou, o que quero, o que procuro, o que sonho. Mas não sei nada disso. Ou quando tento, saem frases tais como fornadas de pizza. Sempre receitas prontas, disfarçadas com cobertura cheirosa de mussarela e tomate.

Ninguém me engana. Não acredito no que os outros dizem. Uma fornada de pizzas a mais, e lá vem aquela coisa gordurosa.

Tem um ponto de interrogação dando solavancos na minha cabeça. Queria exilar esse maldito corcunda para sempre. Mas, intrometido, ele se enxerta em cada naco de pizza que tento fazer experimentar. Ele violenta todas as certezas que engulo.

Pontos de exclamação são piores. Falsos, teatrais. Eles travestem as pizzas para dar-lhes ares de originais. Uma calabresa com ponto de exclamação é quase cômico. Será que ninguém percebe que esses mordomos plantando bananeira são cínicos?

Dois pontos são pretenciosos, arrogantes, empolados tolos. Não tentem me enganar com suas abotoaduras, eu vi que a camisa é rota. A pizza é requentada, molenga, passada, podre. Não adianta justificar, não quero engolir essa nojeira.

Sem falar das aspas, ah, as aspas! Palhaças desbocadas. Porta-vozes, dublês fingidas, que vergonha colocar em bocas alheias uma fatia de pizza mastigada! Quero dizer algo de mim, não mussarela digerida.

Pontos de sustentação são cobertura estreita e rala. Pizza de pobre, de cego. Enfeite fingido, um tapa-olho, uma indisfarçavel incapacidade de saciar.

Vírgula é suspiro, escape, tubo de respiração artificial. Só ornamentação, um bocado de azeitona e queijo ralado. Não diz nem desdiz. Inútil.

Fico por aqui, regurgitando para falar. Me exprimir sem vergonha e nu, cru mas denso. Não sai nada. Eu, as pessoas, o mundo, pontuado de enorme mentira. Só mentira, que não acaba mais de tanta pizza, sem ponto final.

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