Barriga viva

Para Upalele

Sentado no parapeito do prédio, o menino avistava a cidade. Uma gigantesca muralha de concreto recortado. Uma inimitável perspectiva inerte. Um lamento grave e constante desprendia-se do quadro. Pousado sobre o horizonte fragmentado, um céu empoeirado fazia cócegas nas antenas dos prédios.

Luís contemplava aquele monstro anguloso e imóvel. Era chegada a hora de auscultar-lhe as tripas. Levantou-se, tirou da mochila o estetoscópio de raios reverberantes e ligou os monitores.

Foi então que Luís viu, através das paredes, cortinas e vergonhas.

Uma menina toda rosada dormindo num quarto acolchoado; outra chorando, segurando as orelhas com as mãos.

Uma mulher gorda ensaboando as dobras da barriga; outra, magrinha se espremendo na privada.

Um velho surdo dançando no pé da cama; outro, cego montando um quebra-cabeças.

Um homem sério, de gravata e tudo, espremendo uma loira contra a vridraça; outro rindo e fazendo muita fumaça com a boca

Uma tartaruga comendo alface podre; um periquito sem bico, rodopiando na gaiola.

Um açougueiro atirando numa criança.

Um cozinheiro discursando no plenário; um jogador de futebol levando paulada da polícia num beco escuro.

Um monte de homens de azul fazendo tricô numa fábrica grandona.

Várias saias de renda girando e caindo no chão.

Um espinhudo suando na frente do espelho.

Um bombeiro trepado em cima do armário; um pintor com o dedo no nariz da cor da parede.

Uma loira passando a mão nas pernas de um peão; outra loira lambendo um microfone.

Um gordão passando talco nos dedos do pé.

Um teatro de sombra de vultos tremelicando numa sala de cinema.

Uma massagista comendo brigadeiros.

Uma velha de negro ajoelhada, rezando um terço; outra lixando o pé.

Um bebê com um naipe de sopros a espetar-lhe o corpo.

Um homem de óculos escuros batendo na mesa; um outro de capacete batendo carteira.

Uma ruivinha catando na lata de lixo; uma ruivona envernizando as terminações táteis.

Um carrossel girando barulhento de risos; uma roda gigante gritando histérica; uma dança de pipas coloridas soltas no céu.

Luisinho afastou-se da engenhoca e sorriu. A barriga oca da grande máquina de pedra borbulhava de vida.

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