Para Renata
Lucienne Periquita Rodrigues estava recolhida em seu camarim para mais uma apresentação no teatro real. Era o primeiro dia de outono e chovia. Mesmo assim, a plateia já manifestava ruidosa ansiedade por um espetáculo que havia levantado entusiasmos nos mais maliciosos dos críticos. Colados no espelho, de frente para a diva, recorte de jornais traziam as efusões dos editorialistas.
– Periquita, cinco minutos.
Por todos os lados, corbeilles de frutas atravancavam a sala. Periquita não suportava flores: lembravam-lhe o enterro de Michele, sua pequena caniche atropelada. O cortejo fúnebre saíra da capela do mosteiro de São Francisco, seguido de todo o estoque de flores da capital. Triste cena que deixara Periquita na mais espetacular depressão. Para dobrar suas lamúrias melismáticas, o coro de castrati de Gottenburgo ladeara o desfile que se estendeu noite adentro, vaporizando a cidade de odores sombrios e harmonias sorumbáticas.
– Periquita, três minutos.
As gazetas informaram, então, aos fãs, seus justificados caprichos e nunca mais enviaram flores a seu camarim. Até mesmo o Eleitor de Rhumstefsthmnthus, seu mais apaixonado admirador, renunciara a suas cataratas de orquídeas negras das florestas panamenhas, de que Lucienne tanto gostava antes do trágico acidente. Essas flores tinham a reconhecida propriedade de regenerar células mortas e, quando aplicadas na forma de bálsamo cutâneo à tez diáfana da atriz, retiravam-lhe instantaneamente os resquícios noturnos de suas orgias etílicas e secretas. Quando terminava o espetáculo, ela retornava a seu camarim, seguida de um punhado de amigos. Começava, então, a festa.
– Periquita, dois minutos.
Naquela véspera mesmo, o balanço tinha sido de doze caixas de acquavit devidamente entornadas até o último vapor. Mas sem orquídeas, os desgastes eram cada dia mais visíveis e Pierre, seu maquiador, fora demitido, quando ela percebera que seus ungüentos eram inúteis para esconder a ruga profunda que despencava aceleradamente de ambos os lados de seus lábios. E lá estava a ruga, naquela noite. De frente para o espelho, os olhos languidamente lascivos, o nariz afilado, os longos cachos dourados não disfarçavam o sulco teimoso que lhe trazia de volta a dolorosa memória de Michele descendo para o fundo da terra, soluço a soluço, palmo a palmo.
– Periquita, um minuto.
Duas pesadas lágrimas deslizaram lentamente pelas bochechas da desconsolada Periquita e enfurnaram-se pela ruga da boca até o queixo. Sem orquídeas negras, sem Michele, Lucienne Periquita Rodrigues definhava.
– Periquita, vamos?
– Hoje não, Manuel.
– Hoje não?
– Hoje não irei. Nem amanhã, nem nunca mais.
– Nunca mais.
– Não. Morri, Manuel, morri.
– Mas e o povo, a princesa Moniskaia, o embaixador Suarez? Todos a esperam!
– Diga a eles que morri. Que Lucienne Periquita Rodrigues sumiu, desintegrou-se, afogou-se nas dobras da memória.
– Minha Luciennezinha, meu amor, venha, por favor.
– Não posso.
– Pode sim, meu periquitinho de açúcar mascavo.
– Mas eu não tenho forças.
– Tem sim, minha edelweiss do agreste.
– Estou exangue, acachapada, arrasada.
– Você está linda, maviosa, viçosa como a sétima estufa da Babilônia.
– E Michele?
– Que Michele?
– Michele, minha Michele querida.
– O nome dela era Sabrina, Lucienne, Sabrina.
– Ah sim, Sabrina, a mais formosa de todas as caniches.
– É uma gata, Lucienne, himalaia.
– Ah, é mesmo. Sabrina… minha Sabrina querida, onde está você?!
– Está ali, Lucienne, ali no sofá.
– É?
– É. Vamos?
– Então, só mais hoje.
– Está bem. Vamos.
Comemoraram, bebendo um cálice de acquavit e foram-se para o espetáculo.
Mais uma vez, e como toda a noite, era a última apresentação de Lucienne Periquita Rodrigues no palco do teatro real, copiosamente ornado de orquídeas negras das florestas panamenhas.