Em nome do pai

Zé da Conceição era um cabra muito perigoso. Dizem que com vinte e três anos ele já havia roubado, surrado e quase matado vários pacíficos cidadãos. Numa vacilada etílica, prederam o desinfeliz, que foi sumariamente condenado a passar o restante dos seus dias no presídio de segurança máxima localizado numa ilha no meio do oceano. E lá se foi o Zé pagar sua pena.

Mal chegou, Zé virou Caneca Amassada, alcunha dada pelo carcereiro-chefe do campo, Sargento Mané Filó, que tratou de achatar-lhe o nariz logo de cara. Era assim que Mané batizava seus condenados, tirando-lhes sua antiga identidade e geralmente um naco do nariz, dedo, orelha ou, em casos de excesso de homônimos, partes mais sensíveis: “Bandido não tem direito a nome, só a apelido”.

Caneca Amassada ambientou-se facilmente, travando amizade com seus colegas de cela: Fingerless, o marujo inglês; Bule Sem Alça, o professor tarado; e Desbagado, o poderoso cafetão da capital.

A vida não era nada fácil no presídio. Mabuia assada e ensopado de mocó não enchem barriga. Mas Caneca não era de se deixar abater e, quando carregava as pedras de arrimo do dique do porto, ele olhava para o mar, que se estendia para todos os lados, e cantarolava: “Vento e maré / não sou Mané / Aqui só quico / Aqui não fico.”

E foi, então, que Caneca Amassada preparou sua fuga. O plano era simples e fora elaborado com Fingerless, que cuidaria dos detalhes da navegação; Bule, da comida; Desbagado, do disfarce. A jangada levou um ano inteiro para ser construída e tinha sido escondida sob as pedras de uma escarpa acidentada da ilha. A comida, cuidadosamente surrupiada da parca ração diária, e o disfarce, bem, não havia nenhum, já que Desbagado não era homem de se disfarçar.

Num dia de calor sufocante, enquanto o regimento de soldados baseado na ilha roncava à sombra das gameleiras e que Mané Filó desaguava na casinha, Fingerless, Bule e Desbagado correram para a jangada, mas, quando lá chegaram, só conseguiram avistar uma vela tremelicando ao longe, no mar: Caneca fugira com a noiva do padre da ilha, Maria Camita, deixando seus comparsas praguejando e jurando vingança.

Passaram-se muitos e muitos anos. Fingerless morreu de febre, Bule, de diarréia e Desbagado continua lá na ilha, plantando macaxeira e contando história aos forasteiros que visitam o lugar.

Caneca Amassada, quanto a ele, se deu bem na vida. Casou-se com a noiva do padre e virou lanterneiro na capital.

Quando o Sargento Filó se aposentou, ele voltou ao continente, virou capelão da igreja e desfiou os anos que lhe restaram com muita cachaça, badalo de sino e até batismo:

– Bom dia.
– Bom dia, qual é o assunto? Casamento? Missa? Quermesse? Bastismo?
– Batismo.
– Nome do pai?
– José.
– Mãe?
– Maria.
– Nome do rebento?
– Caneca Amassada Filho

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