Era uma vez, onde o céu beija a terra e a terra lambe o céu, uma ilha ensolarada.
Aquele pedacinho de terra, no meio do oceano e a muitas milhas do continente, era o habitat preferido de pelicanos e leões-marinhos. Eles viviam pacificamente, dividindo tudo em perfeito equilíbrio. Ninguém metia o bedelho na etnia alheia. As aves não cobiçavam as pedras chatas do litoral onde os leões douravam o barrigão; e os leões, por sua vez, não invejavam os ninhos fofinhos de onde saíam a cada ano, incontáveis esquadrões de penugem voadara. Havia comida e bebida, sol e vento, luz e paz para todos. Era assim desde muito tempo.
Não havia líderes comunitários nem carismas de palanque. E tudo permanecia como sempre havia sido. Leões procriando silenciosamente, pelicanos copulando desavergonhadamente.
A população de leões-marinhos tinha lá seus velhos conservadores, jovens universitários, capitães de manada, solteironas vitalinas, astros pops e editorialistas mal-humorados, mas tão somente para debater o aquecimento da calota polar. No mais, era só espreguiçar as banhas ao sol e bocejar sem cerimônia.
Da mesma forma, os pelicanos organizavam-se em torno de seus técnicos de futebol, guias turísticos e chefes de cozinha, maestros autoritários e generais, mas só para discutir e debater os fluxos e refluxos das correntes oceânicas. No resto do tempo, era só cacarejar ruidosamente e deslizar entre as nuvens.
Até que um dia, aportou na praia uma foca desbussolada. A forasteira distraíra-se atrás de um cardume prateado e perdera-se de seu povo.
A coitada, exausta e esbaforida, fingiu um desmaio na areia, com violência e dando gritinhos de prima-dona para chamar a atenção. Aquela cena bizarra despertou a curiosidade dos habitantes da ilha. Pelicanos sobrevoaram o local do incidente, e leões- marinhos arrastaram suas pelancas para perto. Apressaram-se todos a seu redor. A foca, esperta, com um olho entreaberto acompanhava a movimentação.
Todos discutiam como iriam prestar socorro à coitada, tão cansada, tão sofrida, tão solitária. Os pelicanos discorriam sobre os grandes benefícios da medicina alternativa e das dietas líquidas; leões marinhos adiantavam que exercícios físicos são nocivos à acumulação de gordura e falavam maravilhas da lipoaspiração e das modernas técnicas de implantes. Cada um tinha uma solução, uma cura apropriada.
Enquanto isso, a foca fazia manha, gemia, batendo as nadadeiras no chão.
As discussões se avolumaram e causaram enormes constrangimentos. Ninguém estava de acordo. A foca exultava, manhosa, deliciando-se com tanta atenção.
Foi então que, contorcendo-se toda, a foca aprumou-se no meio da multidão terrestre e aérea. Todos calaram-se instantaneamente, acompanhando seus movimentos. Ela caminhou lentamente para um rochedo. Subiu e, lá do alto, levantando as mãos para os céus, tomou a palavra.
“Meu povo, minha gente, leões-marinhos e pelicanos, obrigada pela recepção. Estou aqui para iluminar-lhes o destino.”
Leões e pelicanos ouviam pacientemente, divertidos, mas, ao mesmo tempo, curiosamente seduzidos pela oratória.
“Fui escolhida para um solene desígnio. Calotas polares e correntes marinhas, dai- me força para esta missão!”
Nesse instante, a platéia entrou em delírio: os pelicanos cagaram na cabeça dos leões-marinhos, que, por sua vez, urravam com espasmos intestinais incontroláveis.
A foca, lá do alto, acompanhava sorrindo, feliz com o efeito de suas palavras.
Mas o tumulto tomava proporções catastróficas. O transe descambava para uma orgia sem precendentes na história do reino animal. Cenas de sexo improvável, bizarrices, aberrações, uma suruba inter-racial, supra-étnica e transambiental.
A foca, do seu trono de pedra, clamou várias vezes uma chamada à ordem. Ela gritava palavras ameaçadoras, interjeições inflamadas. Todas as técnicas que aprendera no tempo em que vendia sardinha na Groenlândia foram usadas, para tentar acalmar a turba. Sem sucesso.
Só restava uma alternativa: sair de fininho, na maciota, sem chamar a atenção. Foi o que ela fez com muita competência, nadando a grandes braçadas, para longe daquela ilha.
O que aconteceu com a foca não sabemos. Provavelmente encontrou sua turma ou morreu empalada em alguma ilha habitada por iguanas e babuínos de bunda branca, zebras e aranhas caranguejeiras, tamanduás patrióticos e jabutis.
Já a ilha de pelicanos e leões-marinhos nunca mais foi a mesma. De pacata e ordeira, transformou-se num laboratório genético.
Uma foca esperta é mais eficiente que toda a teoria da evolução.