A besta

Eu já estava sem fôlego. Ela corria muito, a danada, e eu não podia descansar um só minuto. Ainda estava muito escuro e eu tinha perdido a noção da hora. A grama estava molhada e a madrugada, apesar de fria, era pegajosa.

Ainda bem que eu conhecia bem o jardim. Mesmo envolto numa névoa densa, eu escolhia o itinerário à medida que corria. Era melhor seguir pelo gramado em vez de percorrer as alamedas desenhadas para a contemplação e que, portanto, não eram as melhores opções de fuga.

Lá no alto, entre a ruína interminável e o bosque, foi possível avistar a cerca e medir a distância que me separava de suas garras.

Seu olhar sanguinolento borbulhava de apetite. Estremeci ao perceber as pequenas cobras aladas que abriam-lhe o caminho. Elas sobrevoavam seus passos em rodopios sibilantes.

Não perdi tempo e continuei correndo, desta vez, ladeira abaixo, com a boca escancarada. O vento soprava nas minhas costas e eu ouvia sua respiração cadenciada, sentia seu humores pestilentos e percebia seus movimentos de braço, dilacerando o ar.

À minha frente, uma construção de mármore envernizado dardejava para o alto enormes torres cônicas. Uma catedral em ascenção surgira no meio do parque. Não havia nenhuma saída a não ser escalar suas rendas e gárgulas de pedra.

Agarrei-me como pude ao santos sem cabeça, que vigiavam, de costas, a porta lacrada do santuário. Ela estava a meus pés, mas, surpresa com minha acrobacia, o golpe de misericórdia de suas garras apenas chicoteou com força o revestimento liso. Aproveitando-me de sua indecisão raivosa, continuei a subir pelas torres. Subia sem mais olhar para baixo, com as mãos, com os pés, com uma agilidade que eu nunca suspeitara ter.

Os campanários vazios sucediam-se, uns após os outros, cada vez mais altos, cada vez mais delgados e frágeis. A besta permaneceu no solo, vociferando, carregando o vento de desespero e vingança.

Quando cheguei no mais alto dos dardos que encimavam a última das torres, não havia mais escalada, nem saída. Fechei os olhos e, tonto como uma biruta, despenquei, sem forças.

Sentei na cama molhado de suor. Salvo e exausto.

O quarto estava escuro, mas seguro.  Levantei-me devagar, carregando o cobertor nas costas. Arrastei-me até a porta.

Mas um reflexo incontrolado, virou-me abruptamente.

Lá estava ela, a besta sem cabeça, de braços lânguidos, novamente, a me encarar.

Antes de cair no chão, antes de entregar-me, a mão acariciou o interruptor, e a luz banhou o quarto.

A porta do armário estava aberta: eram casacos sem cabeça, de braços lânguidos, a me assustar.

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