Isto não é um causo, mas uma confissão.
É muito cômoda a análise à distância. Sabe ser irônica e conclusiva. Mas de nada vale. Não passa de um vago testemunho que mascara uma falsa clarevidência post-facto.
No entanto, farei o exercício de humildade de me transpor ao momento em que os fatos ocorreram, expurgando ao máximo o fácil distanciamento higienizado que todos tomam hoje ao analisar o período de demência coletiva que acometeu aqueles que participaram direta ou indiretamente da chamada bolha da Internet.
A Internet nasceu como uma bandeira que se propunha a ser porta-voz de uma mudança profunda da sociedade massificada capitalista e democrática. Uma bandeira de expressão dos humanos, uma válvula de escape aos instrumentos reguladores e castradores dos sistemas, uma plataforma de liberdade e expansão. Esses valores utópicos foram abraçados pelos chamados pioneiros marginalizados.
Mas, numa espécie de euforia não menos histérica que aquela que se seguiu e que produziu o terremoto especulativo que conhecemos, o entusiasmo cegou as análises mais frias e, dessa forma, esquentou o leito para as mais absurdas e, vale dizer, revolucionárias idéias que nasceram na seqüência.
Com a sorte que temos de nossa economia reagir rápido, mas a reboque de nossa matriz americana, ao mesmo tempo em que líamos estarrecidos aos movimentos de aporte maciço de capital para a chamada nova economia, os primeiros sinais da versão brasileira dessa maré já batia a nossas portas.
– Fernand, liga para essa pessoa. O Gustavo me apresentou o cara e acho que é um assunto de Internet.
Como o Gustavo era uma pessoa importante, uma espécie de imperator onipotente e tentacular, debrucei-me com curiosidade para o bilhete amarfanhado que meu chefe me entregara. O nome era indecifrável mas me apliquei a adivinhá-lo. Liguei imediatamente.
– Por favor, eu gostaria de falar com o Senhor Munch Islamabad.
– Quem?
O nome estava evidentemente errado, mas, sem perder a compostura, declamei com uma espécie de desenvoltura de quem está acostumado a tratar com o tal Islamabad:
– O munchislamabad, por favor.
– Ah, o Múcio?
– Isso.
– Um instante por favor.
Algumas horas depois, um simpático Múcio e sua mochila adentravam o escritório. Introduzi meu hóspede numa sala de reunião e, com a habitual prodigalidade de um iniciado evangelizador, desandei a falar por horas sobre Internet. Afinal de contas, só podia ser esse o motivo de tão misterioso interesse. Contei a historinha clássica, recheando meu discurso de citações e referências yankees e, com os olhos dardejantes de entusiasmo, falei do futuro, do negócio, da libertação, das enormes e infinitas possibilidades de emancipação socioeconomicopoliticopsicanalítica da Internet.
Ao final do monólogo, perguntei, esbaforido:
– Mas qual é o seu interesse exatamente?
– Ah, sim, claro. Nós somos um grupo de investidores e temos uma verba de algumas dezenas de milhões de dólares, para investir no lançamento de um novo serviço na Internet.
Depois de dispensar o lunático investidor, corri para a mesa de meu chefe.
– Quem é esse homem? Acho que ele não bate bem e não entendi nada do que ele queria. Só entendi que ele só pode ser pancada. Eu já via a hora em que ele iria abrir aquela mochila e despejar a meus pés todos os seus milhões!
Mas era tudo de verdade. Eram mesmo milhões. Era mesmo um novo serviço sobre o qual só sabíamos isso mesmo àquela altura: um novo serviço. E, claro, devíamos lançar a tal novidade rapidamente, muito rapidamente, imediatamente se possível.
O fato é que não precisou muito esforço para que eu aceitasse imediatamente que era assim mesmo, que essa era a nova realidade da coisa, que não devíamos questionar, mas baixar a cabeça e aproveitar os ventos favoráveis. Com tantos milhões dando sopa, quem ia ser besta de discutir, argumentar e propor ao sujeito abrir uma poupança, um posto de gasolina ou uma loja no shopping?
Foi assim que nasceu o tal do empreendimento completamente novo. E, se o barato era ser novo, pouco importava o que seria, contanto que fôssemos os primeiros. Isto é, os primeiros aqui, abaixo do equador. A estratégia era elementar, portanto, porque, com tanta abundância, ser o primeiro aqui é fácil: basta copiar o primeiro lá de cima do equador e pronto.
A histeria contagiou a todos, e o vírus se propagou de tal sorte que, a cada dia, a tal coisa nova ficava maior, mais agressiva, mais cheia de business plans e de uma infinidade de outros termos sábios. As promessas não eram menos febris. Números e mais números, lucros e mais lucros, megalomanias desavergonhadas, first round, second round e pimba, a coisa nova estava lá, naquela espécie de meca psiquiátrica chamada Nasdaq.
Um dia acordei. A coisa vendia um exclusivo e inédito serviço que se chama “tempo”. Esse era o nosso negócio. Era para isso que trabalhávamos como escravos lobotomizados.
Foi lindo e foi louco. Confesso que vivi essa demência não menos dementemente que os outros.
Mas morro de rir, ao ler os causos esclarecidos a posteriori por alguns arrependidos profetas do déja-vu.
Morro de rir, ao ler os causos daqueles que “desde o início sabiam que ia dar no que deu”.
Azar o deles.