Inodin passara todo o começo de sua vida numa espécie de observação demente. Ele anotava tudo no seu caderninho, tudo o que via e, com cuidado extremo, pintava seus quadros com cores puras, sem sutilezas emocionais. Assim, todos eram retratados e, no acaso dos encontros e reencontros, a história das pessoas era contada. De todas as pessoas.
Na segunda parte de sua vida, Inodin que a essa altura já era homem respeitável, médico, boticário, cientista e conselheiro do rei, sem se distrair da disciplina de continuar colecionando pessoas, introduzia nas entrelinhas de suas observações cirúrgicas comentários e valores.
Assim, no final da metade de sua vida, Doutor Anodin tinha em mão uma enciclopédia semiacabada de tipos e personagens de um lado e um arcabouço filosófico, de julgamentos, de outro.
Foi nesse momento que começou o maior empreendimento do médico. Ele passou a terceira parte de sua vida recortando e reconstruindo seus cadernos.
A dissecação de seus cadernos seguia uma lógica. Primeiro ele espalhou todos os recortes no chão de seu laboratório, separado por uma fronteira invisível. Perto da grande janela que olhava para a rua, todos os seus personagens estavam alinhados. Do lado da parede, enfileirara os julgamentos. Feito isso, num vaivém descoordenado, impulsivo e randômico, ele espetava, primeiro, sua bengala afiada do lado da janela e, na seqüência catava um julgamento. Finalmente, o doutor depositava os dois retalhos no centro da sala. Quem o via da rua, noites adentro, dançando com a vara na mão por todos os lados, torcia o nariz, apontava ou assoviava. Ele ganhou fama de louco ou bruxo, mas nada atrapalhou sua rotina empreendedora.
E na última parte de sua vida, já cheio de reumatismo e cecidade, o Doutor Anodin reescreveu todos os seus cadernos. Até morrer, ele reorganizou retratos e julgamentos, inventários de personagens com molduras de outros.
Quando o rei Luís recebeu a notícia da morte do mais sábio de seus amigos, o emissário trouxe um grande volume envernizado. A obra de Anodin, tinha a seguinte dedicatória:
“Alteza, os homens são cartas marcadas?”