Para Luca
Dona Silmara acorda quando termina seu sono, no maior breu.
Chove lá fora e a janela da cozinha desenha, de frente para a jardineira, margaridas com ganglios esparsos. O fogão de ferro batido, barrocamente francês, sim senhor, ficou aceso e dispersara gotículas condensadas no vitrô, na cerâmica amarela e nos óculos da velha.
Deslizando nas galochas para não despertar a casa, Dona Silmara executa, com parcimônia, seus designos de avó da carochinha. Os mesmos gestos precisos: a toalha de chita esticada com os cantos pendendo para os lados, três xícaras, a cesta de vime agasalhada com um crochê novo, talheres, o pote abelhudo para o mel, geleia de laranja, açucar e a lata de chocolate. Os olhos do miante acompanham, enevoados pela catarata, o vai e vem secular.
Com o mesmo automatismo cego, vozinha abre a porta da cozinha para recolher o leite. As garrafas deixadas na véspera continuam vazias. De volta para a cozinha, contrariada com o atraso do leiteiro, Dona Silmara retira o avental, dependura a bolsa do mancebo e sai novamente. Como todas as manhãs. Resmungando e tropeçando no gradil carcomido da porteira.
A rua desperta lentamente. A padaria encontra-se a dois quarteirões da casa. Na calçada escorregadia, a velha castanhola com seus passos de camundongo espanhol. Toc toc, tororoc, toc toc, ritmam as solas de madeira. Toc toc, tororoc, toc, patabum patibum toc. Dona Silmara termina o compasso se espatifando no chão, no desabrocho das anáguas brancas.
Recomposta, a velha levanta-se e continua a peregrinação até a padaria. Na esquina, ela só falta despencar da calçada mas se equilibra com maestria. Mais uns passos e ela sorri para o padeiro que lhe reabastece o cesto com duas garrafas de leite. A velha retorna para a casa, confortada.
Olha para um lado, pisa firme, curva-se e atravessa a rua. Lá vem o caminhão de leite. Voa para outro freguês. Um toc toc, dois toc toc, faltam três. Lá vem o caminhão de leite rugindo, trovejando. Mais um toc toc, o caminhão passa. Na soleira da casa, duas garrafas de leite esperam.
Um toc, dois toc. Toc toc, tororoc, toc toc.
No cesto de Dona Silmara, duas garrafas de leite intactas. Com mais duas na porta dão quatro.