A guerra de ninguém

Primeiro, ele se apaixonou pela bunda de Sapoti, e ela, pelo solidéu de Davi. Depois veio o resto. Um dia eles foram morar juntos e era linda a casa dos dois. Tinha um pequeno jardim na frente, um telhado rosado e janelas com venezianas verdes. Sapoti gostava do candelabro de Davi, que ela limpava com cuidado, toda semana. Davi nunca deixava de beijar o peji de Sapoti, antes de sair para trabalhar. As vezes, amigos vinham comer gefiltefish com dendê, uma receita que Sapoti criara para brincar com a mãe de Davi, Frida.

Frida era pequeneninha, rechonchuda e muito divertida quando sentava à mesa, para contar seus “antigamentes”. Suas histórias começavam sempre lá no sul, numa cidade pequena, toda de madeira e fumaça de chaminé. Ela gostava muito de lembrar como conhecera Ivan, seu marido, mascate já falecido. Eles mudaram para a cidade grande quando Davi nasceu. Frida adorava os almoços de domingo, principalmente quando vinha a mãe de Sapoti, Deolinda.

Deolinda era uma negona alta, um pouco tímida, mas cheia de vida. Ela morava longe e nos domingos familiares chegava bem cedinho `a casa de Sapoti. Trazia sempre um cesto de maria-mole, pé-de-moleque ou frutas do quintal. Quando Sapoti e Davi acordavam, a casa já estava cheirando a tapioca. Deolinda era casada e tinha tido muitos filhos, que ela adorava. Mas nada no mundo era mais importante para ela do que seu marido, o pai de Sapoti, Salim.

Salim tinha bigode grisalho e mãos grandes. Era mais velho que Deolinda e, apesar de andar arrastando a perna, todos admiravam sua elegância, principalmente quando sentava ao piano e tocava foxtrote nas tardes de domingo, na casa do genro. E, quando o sol adormecia, Salim fazia chá de hortelã, que todos tomavam com torta folhada de maçã. Mas quem gostava mesmo de Salim era o filho de Davi e Sapoti, Zezinho.

Zezinho nascera dois anos depois do casamento. Ele era um menino muito saudável e era o craque do time da rua. Não gostava muito dos professores e, quando brigava na escola, costumava se trancar no quarto, para desabafar com Pingo, o cachorrinho que Salim trouxera no seu aniversário. Mas os domingos eram sempre dia de alegria em casa, porque as avós disputavam a atenção do garoto. Ele adorava deslizar no colo de Deolinda e apertar o peito de Frida com as mãos.

A vida era simples e calorosa na casa de Sapoti e Davi. E foi assim até o fim. Até mesmo depois daquele domingo quente de verão, quando, sentados no sofá, à noite, todos assistiam ao noticiário. O apresentador anunciou que tinha uma guerra acontecendo lá longe. Ninguém entendeu muita coisa mesmo.

Mas, naquele domingo, quando todos foram embora, quando Zezinho já estava na cama, dormindo nos braços do pai, Sapoti apagou as luzes da sala, acendeu uma vela de Oxalá no candelabro de Davi, pela guerra que ela não entendia, pela guerra lá longe, lá na terra de Salim.

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