Bem feito

Ele tinha um estoque de má vontade que não acabava nunca. Mau humor também. Ranzinza, sempre encontrava algo nos seus interlocutores para poder magoá-los ou deixá-los sem graça, desconfortáveis ou realmente irritados. Era um dom que ele cultivava desde que tomara consciência do azedume de sua missão na Terra.

No entanto, era sociável, comunicativo e sempre estava à vontade, quaisquer que fossem os círculos nos quais evoluía. Sua capacidade de adaptação e humor fazia com que as pessoas se deixassem facilmente seduzir por sua verve eloqüente. Ele também cuidava muito desse seu talento, desde que soubera que aqui viera para perturbar, chatear, arrevesar a vida dos outros.

No que diz respeito `a sua biografia, era movimentada. Logo cedo fugira de casa, entrara para o submundo com extrema desenvoltura e relativo sucesso o que o fizera amealhar uma fortuna colossal. Mas logo se cansara daquela existência mascarada e, embora fosse capaz de disfarçar com maestria sua condição de proscrito, o que lhe permitia freqüentar diferentes mundos, sempre quisera escancarar sua má fé e seus atos desagradáveis. Por isso, abandonou por completo a marginalidade e construiu uma bem- sucedida carreira de granjeiro, armador e escritor de romances açucarados.

Seus relacionamentos eram invariavelmente tumultuados. Ele nutria uma corte de admiradores, puxa-sacos e sinceros amigos, facilmente seduzidos por seus predicados e milhões, os quais ele renovava com fervor, sempre que encontrava o momento ideal para dar-lhes rasteiras suficientemente bem-dadas e assinadas. Assim, ele se deleitava em enumerar uma lista interminável de inimigos e desafetos.

Já sua vida íntima era de uma candura surpreendente. Por detrás das grades de sua mansão à beira-mar, quando ele se recolhia isolado do mundo e de todos, era outro homem. Tinha duas grandes paixões: um extraordinário jardim de flores miniaturas e a construção de maquetes de pavilhões e bangalôs com papel de arroz. Ninguém jamais teve acesso a esse universo secreto. Ele era cuidadosamente guardado, acalentado e romanticamente cultivado.

Era assim, pois, a sua vida. Com as pessoas e as circunstâncias, ele era uma ave de rapina, rápida, traiçoeira, certeira. Mas quando ficava só, quando vestia seu avental e suas galochas de borracha, transformava-se na mais pacífica das criaturas, cantava melodias infantis, ensaiava passos de quadrilha com seus rastelos e enxadas, lambuzava-se de cola branca e brincava até o sol raiar, ornando seus edifícios de papel com floreiras, colunatas e balcões.

E um dia, ele morreu. Assim, de repente, no meio de uma festa na qual ele se comprazia em contar futricos, colocando todos os casais presentes em pé-de-guerra. Caiu e morreu.

Ninguém foi a seu enterro. Nem mesmo os lambe-botas de plantão, nem mesmo seus advogados, nem padre, nem mãe, nem pai. Sua mansão foi lacrada pela justiça, seus bens leiloados, e seus romances esquecidos.

O jardim secreto de flores miniaturas foi vendido a um comerciante de ferro-velho, e sua cidadela de arroz nem ao catador de papel da cidade interessou.

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