A lida

Depois de muitas décadas, ela olhou para trás e assuntou: “Afinal, pra que tanta lida?” E olhando arriba, ela via um corredor, estreitando-se, num aperto só.

O inventário não era tão miserável assim. Tinha aprendido muita coisa, tinha criado filhos e galinhas, sevado uma coleção de amizades e paixões. Tinha também deixado marcas aqui e ali, enfeitadas e por vezes dolorosas cicatrizes. Mas a lembrança estava certa: “Eu fui o que fui, ara!”.

Mas com seus olhinhos vincados, ela continuava pelejando para frente, observando e sulcando o caminho.

Nem era fastio de viver que nem a Dulce e a Juvena. Essas sim já estavam é arrotando terra sete palmos pra baixo. Coitadas, mortas-vivas.

Também não era aquele desespero, aquela fome de goela arreganhada mais. Que nem ela era lá pra trás. Ela ainda sacolejava curiosidade, tomando tento pela vida.

E como os dias passavam, ficava para trás o que era pesado para arrastar, mas lá na frente, depois do corredor que afunilava suas vistas, tinha um jardim com beiral florido.

Quando a velha fechava os olhos era pra regar os brincos-de-princesa, as glicínias, as comigo-ninguém-pode, as sempre-vivas lá do jardim. Era bom saber que lá, lá pra trás só ficava o que ficava pra trás. Já lá na frente, tinha um gramadinho gostoso, verdinho, uma cadeira de balanço, um caramanchão debruado de primavera e jasmim-borboleta.

O que ficou, ficou. Mas o que deu pra levar lá pro quintal de riba, era um sossego, só de lembrar. Seus amores, seus filhos, suas galinhas, suas modinhas e também o Sebastião, ranzinza engomado de noivo. E muita prosa, muita história, muitos mistérios.

Se ela morresse, um dia, tinha a casinha plantada lá, com seus dois pés de romã carregados. Ela sabia e sorria, a velha, muitas décadas na lida de viver.

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