A obra

Era fértil a terra, verdejante, aguada. Onde alcançava a vista, além das margens serpentes do rio, torsos de cobre arrastavam, talhavam, edificavam, nobres construções. O calor abafado suava os canteiros que trepidavam sob o chicote e os gritos dos capatazes. Homens e mulheres, crianças e animais oravam no trabalho para sua fonte de luz, seu sol, seu deus.

E no alto de um observatório lá estava ele, o grande faraó Amnesiotep III, da quinta dinastia, manejando, orquestrando em insondáveis imprecações místicas seus tementes mortais.

À sua volta, plantas, maquetes e servis arquitetos, espalhados no chão, idealizavam um vasto tapete mágico de adoração e pedras.

Amnesiotep III tinha vivacidade mas antes de morrer, expressara o desejo de cicatrizar o reino com sua marca.

Já se iam anos de trabalhos e esforço para erigir a mais grandiosa e perene das obras jamais construídas.

Mas deu tão certo quanto se sonhava. Por causa da profecia.

Amnesiotep III deitou-se uma noite, à sombra de uma tenda, no chão e sonhou. Sonhou com uma grande nuvem deslizando no céu. Uma nuvem não, uma águia. Um águia não, um cometa. Um cometa não, um capacete de ouro. Um capacete não, milhares deles formando incontável exército. O faraó despertou, molhado e apavorado. Os sábios oráculos foram imediatamente convocados e consideraram triste profecia.

Disseram ao faraó que ele seria invadido por um poderoso exército que deitaria o império de mãos suplicantes para o céu, no sangue, na pena e no arrependimento.

O crédulo Amnesiotep III, naquele dia seguinte, dirigiu-se a seus ministros, generais, sacerdotes e familiares numa  solene abdicação. Ordenou ainda que sua carcaça subitamente tremelicante e moribunda fosse imolada diante do mais abjeto e estropiado dos escravos.

Fez-se a vontade do chefe. Mandou-se chamar um hebreu rastejante.

Amnesiotep III, filho do sol, entronado com majestade, olhou para o homem, curtido e velho. Dirigiu-lhe então a palavra e mandou que lhe dessem uma lança afiada.

–    Hebreu, mate-me.

Mas o demente mal tinha força para levantar a face e, com os olhos fixos no chão, respondeu.

–    Por quê?

O faraó, contrariado com a impertinência, levantou-se.

–    Por que não queres me matar Por quê? Mate-me, que libertarei seu povo.
–    Não.
–    Por quê?
–    Porque não tenho motivos nem forças
–    Deves matar-me. Salve-se e salve sua gente. Mate-me.
–    Por quê?
–    Por que o quê?
–    Por que matar-te?
–    Porque quero.
–    Por que queres?
–    Porque devo.
–    Por que deves?
–    Porque está dito.
–    Por quê?
–    Porque eu sonhei, anunciou-se.
–    Por que sonhou?
–    Por quê?
–    Por quê?
–    Sim, por quê?
–    Por que o quê?
–    O que o quê?
–    Esqueci
–    Esqueceu?
–    Sim.
–    O quê?
–    O que o quê?

E foi assim que nasceram os porquês das coisas, das obras, do suor, dos sonhos e da morte. Não tem por quê.

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