Da arte de cozinhar ovos

Para Soraya

Era cedo ainda, a cozinha estava vazia e escura. Uma barata enfastiada procurava refúgio para dormir, e uma mariposa de pijama roncava no teto. A ampulheta descansava na bancada.

A luz acendeu, e Dalva apareceu para preparar o café. A família já não era mais a mesma. Todos tinham ido embora fazia anos. Dona Maricota falecera no ano anterior, deixando seu Fernando sozinho na casa, na cama, na mesa da copa. Havia trinta e dois anos que Dalva era responsável pelo desjejum de seu Fernando: seu chá com um pouco de leite, suas torradas levemente douradas, sua banana assada com canela e seus dois ovos quentes.

Os ovos quentes de seu Fernando eram o meio do caminho entre uma experiência científica de alta precisão e um ritual religioso. Nem mesmo Dona Maricota tinha sido capaz de cozinhar ovos como Dalva. A sabedoria daquela operação dependia basicamente de uma sensibilidade aguçada de avaliação do volume dos ovos, para graduar o tempo de cozimento com a ampulheta. A temperatura da água também era um mistério cuja receita pertencia apenas à velha cozinheira.

Como todas as manhãs, Dalva estava lá. Ela, o sol que começava a espreguiçar-se pelo vitrô da cozinha, a mariposa preguiçosa e a barata barriguda. Os ovos haviam sido cuidadosamente retirados da geladeira na véspera e descansavam perto do fogão. A água ferveu e Dalva colocou com cuidado os ovos no fundo da panela enquanto, com a outra mão, girava a ampulheta.

Os incontáveis grãos de areia branca adormecidos, despertaram, escorregando pelo vidro e despencando na parte inferior da ampulheta, para se imobilizarem novamente.

Dalva puxou o banquinho e ficou observando a agitação nervosa das partículas na parte de cima do vidro. Ela gostava desse momento. Era como se ela tivesse um poder sobrenatural, divino. Todos os dias ela ressuscitava os grãos de areia e os precipitava no grande funil do tempo, até morrerem para renascerem no dia seguinte. Na parte de cima da ampulheta, os grãos vivos apressavam-se para morrer na de baixo. Esse era o destino implacável da vida dos grãos: correr, correr, correr para morrer. E quando o fim chegava, o fim de suas curtas vidas, os ovos do seu Fernando estavam prontos.

Naquele dia, tudo estava igual, exceto por uma pequena mudança, inicialmente imperceptível. Dalva acompanhava os grãos, concentrada, como todos os dias. Mas, aos poucos, pareceu-lhe que os grãos estavam inconformados com seu trágico fim: a parte de baixo da ampulheta tardava em se encher.

O tempo passava, mas Dalva estava distraída: começou a lembrar-se de quando brincava de boi-de-manga no quintal de casa; de quando seu pai saíra com a enxada nas costas, para nunca mais voltar; de quando sua mãe gritara “Jesus”, antes de fechar os olhos; de quando saíra de casa; de quando começara a trabalhar para Dona Maricota e de quando ela morreu como uma santinha, em sua cama rendada. Dalva lembrou de tudo isso e de muita outras que ornaram sua longa vida.

Dalva morreu naquele dia. Apagou-se com o suicídio do último grão de areia na ampulheta.

Só foi chato porque os ovos do seu Fernando passaram do ponto.

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