Monthly Archives: December 2003

Deus hoje pela manhã

Se Deus existe, ele tem que saber.

Saber da força da Terra, musculoso polvo de tentáculos infinitos. Ele tem que saber que são falsos os discursos, que são impuras as intenções, que são mentirosas as comunhões. Deus tem que saber da traição, do ciúme, das feridas perenes.

Se Deus existe, ele tem que ver.

Ver que crianças morrem no berços do egoísmo, que velhos choram de futura saudade, que, entre eles, homens flagelam-se de cegueira. Ver o deserto a galope, a floresta leprosa, o mar de secas lágrimas, o céu desfocado. Ele tem que ver que tudo é assim e pronto.

Se Deus existe, ele tem que aprender.

Aprender que o homem não é seu filho e que a fé é improvável bóia. Que transcendência e sobrevivência são de eterno divórcio. Deus tem que aprender que a morte é ruim, feia e apavorante. Aprender a falácia da salvação.

Se Deus existe, ele tem que crer.

Crer no sonho do homem, na ternura involuntária, no amor reflexivo, no afeto incontrolável. Crer que a humanidade é inocente e que, de sua transparência ingênua, nasce o humor de nascer, viver e morrer. Deus tem que crer no homem.

Se Deus existe, ele tem que viver. Se Deus existe assim, então, acho bom.

Do céu que nos diverte

O céu estava cinzento, molhado e pesado. Homens e mulheres, acanhados, fixavam o chão, cumprimentando-se com os ombros, fuzilando olhares distraídos e palavras à-toa. Cápsulas de solidão indo e vindo.

A cidade crescia, zumbia, paria monstros, naufrágios, andróides gigantes espalhando seu óleo de máquina num dócil papel crepom. E os homens, as mulheres, os seres criadores recolhiam-se, mecanicamente humiliados. Utilitários descartáveis pra cá e pra lá.

Mas um ovo caiu lá de cima. Um ovo de galinha caipira. Enquanto ia despencando, o mundo desfilava acelerado. Ele via muitas nuvens e movimentos. Girando, girando, caindo, caindo. Depois veio uma galinha, apressada, de bico no prumo da queda, seguida por um dragão faminto, no balanço de uma língua enorme.

O ovo, a galinha e o dragão riscavam o vento, descendo perigosamente em direção ao asfalto povoado.

Nenhum humano viu nada quando a galinha recuperou sua futura prole, quando o dragão engoliu tudo de uma lapada só, bateu asas e sumiu.

Mas uma cadeira caiu lá de cima. Uma cadeira de madeira e palhinha. Ela rodopiava de pernas para cima mobiliando o ar. Depois veio um criado-mudo vociferando atrás da companheira perdida e um gato gordo, peludo, miando e fungando.

Os três vizinhos apostavam letal corrida na rua hipocondríaca.
Ninguém viu coisa nenhuma e cadeira, criado-mudo e gatão enfurnaram-se numa janela anfitriã.

Mas uma peruca deslizou céu abaixo, encrespando seus fios castanhos no pó suspenso. Depois veio um leque andaluz, com suas rendas esbanjadas e um espelho de mão, caçando os reflexos perdidos.

Ficou por isso mesmo e os vaidosos do toucador passaram em branco. Homens e mulheres da rua nada perceberam.

Só quem viu, só quem se maravilhou, foi o betume da rua, mas ele era mudo e mouco.

Baby

Uma anjo passou voando por cima da multidão aglomerada. Uma velha de profundas olheiras e rasgos na face virou-se e encarou a transparente aparição.

Foi então que ele caiu e perdeu-se na turba contaminada.

A queda, abrupta e incontrolável, dissipou a memória do ser celeste, para sempre. Mas, de susto, ele despertou e viu  tragédia. O anjo caído rastejou na lama, tateou, impregnou-se de sobrevivência. De inveja, de fome, de medo, de ignorância. De sorriso e calor, de desejo e sonho, de pergunta e fé. O anjo perdido arrastou-se na fauna, na formas infinitesimais, no orgânico. Expulso, ele engatinhou nos sulcos e inaugurou virgens cenários.

Atônito, amnésico, perdido, ele procurou, agarrando seus finitos sentidos onde podia.

A anciã morrera naquele suspiro e jazia de braços cruzados, esperança nos lábios.

Um grito parido rasgou o passado, ecoou no porvir. Um baby nasceu, da agonia do fim, da distração de um anjo.

A casinha colorida

Na Patagônia, numa planície que se perde na vista, tem uma pequena casa colorida, com chapéu de fumaça dançando no telhado.

Assim de longe, caminhando pela estrada que corta em linha reta os campos selvagens, é fácil reconhecer a construção solitária. Ladeada por duas magnólias que florescem quando bem entendem, a casinha tem duas janelas azuis e uma porta vermelha.

Ao aproximar-se, percebe-se o poço acocorado no gramado, a clarabóia que beija o céu e a chaminé que rasteja pela parede; o tijolo rosado, os gerânios acrobatas e o parapeito anfitrião. E lá, nas janelas, cortinas entreabertas.

A casinha colorida da Patagônia é hospitaleira. Quando se chega entre os dois minúsculos canteiros de vinha brava, a porta abre-se suavemente e os sinos de latão cantarolam boas-vindas. Na soleira, o capacho amacia-se e o lustre rendado ilumina-se. Na diminuta sala, uma grande poltrona arreganha-se. Nas paredes de madeira, os retratos sorriem. E, da escada que sobe decidida, um perfume almiscarado acena.

Se um dia você se aventurar por aquelas bandas, vá desarmado de curiosidade. Vá só e entre sem perguntas. Suba a escada sem hesitação, sem medo, sem desejo. Lá em cima, tem um único quarto com duas janelas e uma grande cama fofa. Dispa-se sem vergonha, deite-se sem pudor, durma sem despertar.

A casinha colorida da Patagônia é para onde vão todos aqueles que sonham. A casinha colorida da Patagônia é para nunca mais voltar.

Cupido

Um marinheiro barbudo, apoiado numa coluna do templo, alisava seus tesouros. Enquanto ele desembaraçava um a um os fios de ouro, desafinava uma canção de roda. A ruína, amarelada pela sonolência do dia, ecoava em cânone o melancólico estribilho. E adiante, nas rochas que cobriam a encosta da colina, nas dobras secas do vale, no mar cobalto, na bruma algodoada do horizonte, o imenso silêncio paralítico.

Quando o pirata cessou de pentear suas jóias, ele silenciou, acocorou-se e fumou com gosto um longo cachimbo de alecrim. Uma mão no forno de porcelana, outra na longa barba cinzenta, ele observava o teatro do alto de sua amnésia. Onde estava? O que o trouxera ali? Quem ele era? Isso o fazia ressonar e criar caóticos halos de saudade no ar.

No final da grande cordilheira que se arrastava até o oceano, uma sereia dourava-se no sol da tarde, beijando as marolas que ritmavam sua cauda. Ela distraíra-se por todo o dia, seguindo um cardume de tartarugas migratórias, pulando em anêmonas coloridas, alisando moréias malcriadas e telefonando para suas correspondentes asiáticas.

A sereia voltou, então, para o mar e, com água até o nariz, descansou o olhar sobre a superfície lisa, sobre a areia inclinada, a relva selvagem, a cena lírica de sua solidão. Há quanto tempo não via seu amante? Onde estava? O que seria de sua eterna lida? Isso a fazia suspirar e desenhar fios dourados de tristeza no vento.

Um anjo passou, planando sobre a Terra monótona. Ele viu os sinais. Com delicadeza, soprou na fumaça perfumada e alinhavou os cabelos de ouro que bailavam no ar. Por fim, num movimento de seus divinos desígnios, costurou desespero e esquecimento.

Foi assim que foi. O amor não pode errar no vento.

Internet: o maior brechó

O que é novo? O que é original, pioneiro? O que é surpreendente, revolucionário, genial?

Há algo de novo nas pessoas, no mundo e nos sonhos coletivos ou individuais? Por que errar à caça de algo que vença a alienante monodorna cotidiana? Por que o jogo de fingir encontrar? Por que iluminar-se com a descoberta fugaz? E por que seguir peneirando vulgaridades?

Prometeram-me uma revolução, uma rede de expressão democrática e subversiva. Prometeram-nos um universo em expansão, sedutoramente virtual e sem fronteira. Prometeram uma válvula de escape.

A Internet fez promessas e não cumpre. Talvez porque ela não seja esse balaio todo. Porque provavelmente ela é apenas um balaio, sem fundo. A Internet não foi feita para entregar o novo embora ela desfarce a expressão da banalidade com um aparato tecnológico e muitos discursos iluminados.

Mas e o novo?

Talvez o novo não esteja disponível. Talvez ele sequer exista, em estado puro. O novo é sempre um ponto de vista, um ângulo, um filtro. O novo não é novo, está novo. E para isto, precisamos de uma plataforma de velhas coisas, muitas velhas coisas, todas as velhas coisas, infinitas velhas coisas. Essa plataforma, a melhor delas, a mais infinita, se chama Internet.

Mas não basta. Precisamos também perguntar ao velho. A Internet existe para nutrir nossa atávica, incontrolável, reflexiva necessidade de perguntar, perguntar e perguntar de novo. A Internet não está aqui para dar respostas. Pouco importam aliás. É preciso perguntar, sempre perguntar. A Internet só serve para nos dar a ilusão de que existe saída para nossa dramática condição de humanos à procura do novo. Ilusão.