Chovia naquela manhã e Benê não se deixou levar, como tantas vezes antes, pela preguiça. Ele saiu, de machadinha na mão e trouxa no ombro, com o olhar plissado de quem enfrenta a escuridão.
O caminho descia para o rio emoldurado de um verde selvagem. Seguindo seu curso, Benê não precisava decifrar as estrelas nem a trajetória do Sol. Na magra costa de pedras ele caminhou léguas e léguas. Dormia ao relento e o múrmurio das águas povoava de confissões os sonhos de Benê.
De manhã, ele comia peixe e morangos, e lambia o cálice dos juncos. Fartava-se e seguia em frente. Benê dialogava com o rio, registrando o secreto testemunho do tempo caudaloso.
Serpenteava as margens cada vez mais espessas e distantes. Vez por outra, nos aclives polpudos, a machadinha golpeava o mato em cicatrizes precisas. Ninguém traía a solidão voluntária de Benê.
Quando surgiu o primeiro barranco vermelho, a primeira roça, os primeiros cascos na terra batida, o homem decifrou os sinais. A jornada chegava ao fim. Algumas crianças nuas na água deram-lhe boas-vindas e odores ruidosos, lá longe, anunciavam a cidade.
Foi ali mesmo que Benê descansou a bunda no chão, no cinturão verde que sufocava o progresso. Mais tarde, ele pôs-se ao trabalho. Com a machadinha talhou uma casinha, com a machadinha abriu um alpendre florido ao redor, com a machadinha construiu sua nova vida.
E o tempo passou. Muito tempo passou. Tempo de mais. Tudo cresceu. A cidade esparramou-se sepultando o rio, o mato, o riso das crianças.
Mas o tempo esqueceu Benê, passou ao lado, deslizou sem vê-lo.
Lá no meio da cidade abafada, tem um jardim esculpido a machadinha e uma casinha simples. Tem Benê que respira tempos de antigamente e as memórias do rio.