Circunvoluções

Com um pincel na mão e uma palheta de cores abraçada contra o coração, ele iniciou sua volta ao mundo. Num passo vazio de intenções, tateando ao sabor dos humores e a cabeça enterrada no peito, ele percorreu muitos lugares.

Na primeira circunvolução, em cada canto, ele chorava uma única gota de tinta. Uma única cor virgem. Roxo aqui, vermelho ali, amarelo, azul cobalto, turqueza e céu, verde rio camuflado, rosa tez, céu da boca e cicatriz, ali, ali, ali.

Logo depois, ele continuou rodopiando pela terra. Um pouco mais rápido, um pouco mais preciso. Mais esperto também. Assim, em todos os lugares, as lágrimas de cor eram como pupila e iris, gema e clara, picada de inseto e vermelhão. Uma cor dentro da outra. Branco com preto, verde com roxo, turqueza e verde, mar com espuma, leite e nata, pistilo púrpura e pétala de fogo.

Ele não cessou sua órbita terrestre depois dessa segunda viagem. Na terceira, ele já estava calejado de experiências e horizontes. Foi indo ao redor do mundo soluçando outras tintas, outras cores. Complexas, caleidoscopicas manchas nas nuvens, nos cimos, nas sarjetas e leitos. A palheta aos solavancos, o pincel em riste, ele pintava o mundo em miríades de cometas.

Vijou muitas outras vezes, muitas voltas ao mundo ele deu, atomizando o horizonte em fogo cruzado. Pintando, pintando. Diluindo licores essenciais em sua palheta e esporrando mandalas da ponta de seu pincel. Em todos os lugares, de um lugar para outro, em grandes cirandas, ligadas, religadas. E quem olhava o mundo de cima, via um novelo intricado de fios coloridos.

Quando ele cansou, quando o mundo que ele pintara estava cinza, mistura de cores em superposição exsangüe, ele parou.

Parou de viajar. Catou o pincel esbaforido, a palheta craquelada, o pincel e a palheta de tantas jornadas, e debruçado sobre um canto de pedra, em algum lugar qualquer do planeta ele traçou.

Antes de engolir o pincel e lamber a palheta, ele fez um círculo e arrojou-se em ceu centro. Como um feto redimido.

Circunvoluçôes II

O pincel vinha cravado na garganta, a boca digeria contrariada um gosto branco de tinta. Seus olhos recém-nascidos procuravam a todo custo fixar-se do lado de fora do círculo que ele mesmo desenhara, mas a gigantesca mancha verde-acinzentada se impunha com a mesma força que o queria ali, estático, involutivo. Como um feto destinado.

Assim começava a sua primeira viagem pelo mundo pintado de cinza. A direção, era o olhar quem determinava, ainda mal-formado, porém atento. Com insistência e desapego ele buscava um ponto fixo, um único ponto onde seus olhos encontrariam o esperado refúgio no mundo de movimentos borrados.

E foi no interior de uma mancha que ele vislumbrou o primeiro ponto. E com o ponto vinha a cor, o primeiro pigmento, um vermelho sujo. E com a cor, mais pontos, milhares deles, com milhares de outras cores sobrepostas e entrelaçadas.
E no interior do traço, a primeira linha. E das linhas, os objetos com suas sombras e seus espectros.

As gotas de cor eram como pupila e íris, gema e clara, picada de inseto e vermelhão. Uma cor dentro da outra. Branco com preto, verde com roxo, turquesa e verde, mar com espuma, leite e nata, pistilo púrpura e pétala de fogo.Como se cada uma delas contivesse as demais, e as demais contivessem também outras tantas cores nunca imaginadas, mas que existiam como possibilidade.

Cada nuance era agora percebida, nada mais lhe escapava ao olhar. Chegara o momento de interagir.

Armado de um pincel e de uma palheta de cores, ele vai rodopiando pela terra, pintando, pintado, em circunvoluções. Muitas voltas ao mundo ele deu, atomizando o horizonte em fogo cruzado. Diluindo licores essenciais em sua palheta e esporrando mandalas da ponta do seu pincel.

Foi indo ao redor do mundo esparramando tintas e cores, complexas, caleidoscópicas manchas nas nuvens, nos cimos, nas sarjetas e leitos. Roxo ali, vermelho ali, amarelo, azul-cobalto, turquesa e céu, verde-rio camuflado, rosa-tez, céu-da-boca e cicatriz, ali, ali, ali.

A palheta aos solavancos, o pincel em riste, ele pintava o mundo em miríades de cometas. Em todos os lugares, de um lugar para o outro, em grandes cirandas, ligadas, religadas. E quem olhava de cima, via um novelo intricado de fios coloridos.

Assim, apareceu uma lágrima de cor, no canto esquerdo do olho. Uma única cor virgem. Um verde puro. Mais tarde ele chorou as outras também, as que existiam e as que nao existiam, uma por uma, como se o seu corpo estivesse impregnado de pigmentos. E num passo vazio de intenções, a mão abandona o pincel, e os braços, a palheta de cores. Ele nao mais pintaria.

Fabiola Llussa

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook