Fecha não fecha

Noite, quase madrugada e o café esvaziou seus habituados bêbados. No salão, mesas descadeiradas, balcão encardido, garçons mal-humorados. Poucos focos de sonolenta vigília. Aqui, um policial aquece a espinha; ali, um estudante devora seu sanduíche murcho; adiante, um casal sorve uma sopa desoladora. Os últimos clientes ancoraram suas nádegas no café triste.

Chove e gela lá fora. Poucos fregueses ainda arriscam, sem sucesso, da porta, um último gole, um último alento, palpite, conforto. A cidade desalma os desgarrados.

São onze e vinte agora, e um gato se espreguiça sob o toldo encharcado: é quase hora da caça para ele. O patrão desliga o rádio e precipita a faxina que se arrasta.

Se arrasta. Se arrasta. Se arrasta. Fecha não fecha, fecha não fecha. Não fecha ainda, quase na hora, quase, quase. Ela está chegando. Atrasada. Deve ser a chuva, o frio. Onde estará? Vai demorar? Será seu vulto pardo na esquina?

Toca a campaninha da porta. Os sinos despertam o olhar curioso do estudante, a malícia do policial, a esperança do velho casal. Despertam também o sorriso maternal do patrão.

Encasacada da cabeça aos pés, um longo cachecol a disfarçar-lhe o rosto desertificado, a dama escorrega como um espectro. E mastiga um boa-noite rouco. Em segundos, a velha desaparece pela escada em caracol que desce ao porão. Alguns coxixos reverberam no café. Todos se concertam e interrogam quem é. Mas o patrão emudece sorridente, como todos os dias, como há quarenta anos quando ela entrou pela primeira vez no café. Chovia e também fazia frio.

O café curioso murmura.

É quase meia-noite: um tilintar de cristais, um farfalhar de seda; um vapor silvestre escapa do banheiro, do porão. No salão, o estudante mastiga, o policial degusta, o casal saboreia, lenta, silenciosa, atentamente.

O café teso suspende o fôlego.

Meia-noite agora: um chapéu de feltro, uma serpente de pluma rosa e um longo colar belle-époque serpenteia escada acima.

O café extasiado aplaude.

O patrão se precipita e, com uma profunda reverência, escancara a porta do café. E Dame Loulou, numa nuvem de cânfora, escapole pela noite. Sublime. Absoluta. Eterna.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook