Além da cordilheira

No topo da cordilheira vivia uma população de águias de colarinho branco. O refúgio ventoso dos pássaros era solitário e apenas temperado pelas idas e vindas à planície, em busca de notícias e alimentos. Todos os dias, as rapinadoras desciam para caçar e observar. Ao entardecer, quando o sol escorrega por detrás dos paredões brancos, machos e fêmeas retornam para prover alegria e sustento.

O cair da tarde  convivial é uma tradição naquela espécie. Ao aproximar-se do ninho, as águias sobrevoam calmamente o local, para arrefecer o ânimo esfomeado das proles. Pousam, então, e, com um íntimo carinho, depositam na boca de cada filho a ração diária. Depois de acalmados, os rebentos adormecem ao sabor das histórias sobrevoadas pelos pais: um festa camponesa de cores e danças, uma  procissão florida, uma tosa de ovelhas e tantos flagrantes de abraços furtivos nos bosques, de brincadeiras proibidas, de enlaces e amores humanos. Quando finalmente a lua levita no horizonte, a cordilheira sossobra nos céus austrais.

Era assim também no ninho de Quetzoquil, o ancião das cordilheiras. Do alto de sua idade extraordinária, o lar do velho era o mais fértil em imaginação. É que, com o passar do tempo, Quetzoquil já não caçava, não via e não se acasalava com a mesma competência. Mas, para compensar seu cansaço, suas histórias eram as mais loucas, as mais ricas, as mais verdadeiramente falsas, as mais falsamente reais.

Um dia, na véspera de sua transcendência, Quetzoquil fez um mágico relato. As águias de todas as idades agruparam-se à sua volta, numa respeitosa e curiosa comunhão.

O velho começou esquadrinhando em todos os matizes a imensidão amassada da Terra. Sua homogeneidade disfarçada, seus infinitos cenários. Em seguida, a águia falou dos homens, dos animais, das plantas e de todas as coisas que povoam o planeta. Falou também das coisas não coisas, dos espíritos, das almas e dos humores do vento. E dos deuses atmosféricos, dos subterrâneos, dos adorados totens e amuletos sagrados.

Quando o ancião terminou seu longo desabafo, as águias, ébrias de saber, chacoalharam extasiadamente as asas, agradecidas e emocionadas.

Foi, então, que Quetzoquil retomou a palavra e, num último suspiro, declarou que era chegado seu tempo de partir, de mergulhar enfim, para além das histórias, para além do sonho e das ilusórias aparências da vida.

Seu tempo de naufragar na morte, crua, real e sem imaginação.

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