Conto não coração

Ele era tão pobrezinho, tão sem nada na vida. Mané morava de favor, debaixo de uma seringueira, dividindo o ninho de raízes com Ronco, o cão pardo.

Mané chegou na cidade ainda pequeno, mas não chora mais das feridas da lembrança e nem das noites em que sonhava. Era um dia após o outro.

De manhã, acordava, catava uma manga no pátio do convento, quando tinha, e, com Ronco aninhando a fome nos seu colo, ele se recostava no muro da igreja até de noite. Quando não estava mirando as nuvens, conversava com o cão. Às vezes, sorria também para a moça que varria as escadarias ou comentava o fluxo de fiéis com outro coitado de passagem. Tinha dias que deixavam ele se debruçar na janela, perto do altar. Ele gostava de ouvir o padre e o incenso lhe dava tontura gostosa. Mas não era sempre. Outras vezes, quando tinha muita esmola, sobrava um troco para ele. Dava um pão e um osso. Coisa boa.

Tinha também as festas da igreja e, então, Mané cuidava de limpar a praça. Teve uma vez que ele tomou quentão e todo mundo brincou, quando ele cantou. Nem ele sabe de onde tirou a letra que dizia mais ou menos assim:

“Um, dois, três,
Era uma vez,
Um, dois, três.
Saí de lá,
Eu vim pra cá.
Tem coisas que não conto,
Mas não sou tonto,
Tem segredo que não conto,
Conto não meu coração”

Mané cantou e dançou muito, sem parar. Até Ronco desconfiou. As pessoas todas também diziam: “Que diabo Mané tinha que não contava?”.

A vida de Mané e de Ronco nunca mais foi a mesma depois disso. Mané não sossegava dos olhares do povo matutando.

Era um tolo, dormia na rua e não era nada, mas, depois da quermesse, Mané não era mais Mané. Ganhou casa, comida e até chinelo de ir rezar.

O que Mané tinha, ele não contava. Mas o povo, o povo sem coração, assuntava do segredo de Mané e, por isso, quanta consideração!

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