Monthly Archives: August 2004

Assassinato suicida

Ele despertou do coma. Parecia que não comia havia muito tempo. E como um cego, Sysop tateou à sua volta.

Lá no fundo de sua inconsciência, as memórias de outras experiências vegetavam. Mas o ciclo renovava-se. Um sutil arrepio de vida iniciava-se ali.

Sysop carregava um vazio que parecia infinito. Era muito pesado comportar o oco. Ele precisava comer, alimentar-se, preencher aquele nada.

A garganta da Maria era escura, fria, úmida. Catarrenta, pelancuda, reverberante, como um pântano, uma gruta, uma concha.

Mas foi ali que Sysop, um vírus excomungado, renasceu. Foi ali também que a Maria, gripada, começou a queixar-se. Logo a intimidade virou promíscua: Sysop multiplicou-se, porque fértil era a garganta da moça.

Foram dias de orgia para Sysop. Comendo e procriando. Dias de pena para Maria. Tossindo e escarrando.

Uma tarde, a siesta de Sysop foi interrompida, abruptamente. Uma enxurada letal, amarelada e fedorenta, despencou, afogando a obesidade parasita do vírus.

Foi melhor assim, porque a moça respirou com o último suspiro do vírus assassino. Foi melhor assim, porque o último suspiro da Maria asfixiaria Sysop, o vírus suicida.

Filomena despertou abusada

Um raio de sol escorregou pela testa e furou as pálpebras.

– Jacinto! Jacinto!

Jacinto arranhou a porta e entrou precedido de uma servil reverência.

– Pois não, madame.

A loira estava recostada em suas almofadas de pena, com a maquilagem mal-lavada escorrendo pelas bochechas, e os cachos em desalinho. “Terremoto escala seis no Museu de Cera”, pensou Jacinto.

– Meu espelho, meu espelho!

De lá, Filomena agitava seus braços bufantes e de cá, os pés gordinhos jaziam como bebês saciados na coberta de cashemere. “Que mania de repetir duas vezes as ordens. Gaga ela, e surdo eu”, incomodou-se o mordomo.

– Que horas são? Tenho compromissos?

A condessa constatava o desastre da ressaca. Ajeitava uma ruga aqui, esticava uma madeixa lá. “Quando o prato está uma pia, não adianta colocar açúcar depois”, filosofou o empregado, enquanto abria silenciosamente as pesadas cortinas do boudoir de madame.

– Sim, madame. O coiffeur já chegou, a esteticista e seu instrutor de ginástica rítmica, também. O banho está pronto. Tafetá ou mousseline hoje, condessa?

Filomena empoleirou-se nas plumas. Como ela gostava desse momento mágico! Era a coroação de sua indispensável importância no universo. “Pode vir, pode vir, me bate, me humilha, me chama de capacho, pulga, verme, salmonela perniciosa”.

– Minhas panóplias de esgrima e equitação, já Jacinto. Já, eu disse, Jacinto.

O séquito rumou para o parque do castelo, para acompanhar as performances esportivas da dama. Até o cabeleireiro tagarela, o esteticista andrógeno, a ginasta romena aposentada. “Vai chover.”

– Meu penteado!

As alamedas eram uma paleta ocre e sépia e como se tentassem uma última súplica, os carvalhos fremiam seus galhos nus no céu grávido. “Muita escolha mata a escolha”, lamentou Jacinto, a caminho da herborização na estufa de bromélias.

Como velar-se do casamento

Plínio saltou para fora da água. Ele se espreguiçou longamente, esticando as nadadeiras, mas tomou um susto enorme. Pesada, por cima da linha do horizonte, uma tempestade enegrecia a manhã.

O honrado bacalhau não acreditou e repetiu a ornamentação várias vezes. Era verão e no verão não chovia. E mais: ele estava noivo e chegara o dia de suas núpcias. Além disso, tinha o cruzeiro austral que coroaria sua lua-de-mel e Marcelina, tão sensível, tão nervosa, tão inocente, tão desprotegida! Adiar? Nem pensar. Contar para ela, pior ainda! Transferir o local para uma caverna protegida, talvez fosse uma idéia. Mas e as flores, o bolo, os chapéus das damas especialmente confeccionados para a garden-party originalmente planejada? Isso era impossível também.

Só lhe restava uma alternativa. E foi assim, cogitando, que Plínio afundou e nadou rapidamente para o salão de beleza. Marcelina esperava notícias da previsão do tempo que definiria qual dos véus usaria, se o longo, vaporoso para correntes leves ou o curto, rendado em caso de ondulações sutis do mar.

Tempestades são inimigas dos véus, todos sabem.

E se ele dissesse simplesmente que o véu lhe parecia desnecessário, enaltecendo, assim, sua nobre testa, suas escamas prateadas, sua tez? Ou talvez ela pudesse amarrar a organza com a tiara de algas polinésias que Plínio lhe havia dado na celebração de seu noivado? Quem sabe não ficasse melhor ainda encimar a cabeça de Marcelina com um chapéu? Ou grampos? Transformar o véu em turbante à moda do golfo pérsico? Quem sabe um nó cigano? Como convencer Marcelina? E pior, seus cabeleireiros, maquiadores, estilistas e a mãe? A mãe, aquele arenque empalhado, aquela moréia desdentada, histérica!

Plínio estava desesperado, aflito, tresloucado.

Mas, afinal, para que véu? Para que o protocolo? Para que tanta cerimônia? Para que festa, convidados mil, bacalhaus de companhia, coral de sereias? Esponjas e anêmonas enfeitando o cortejo? Sogra fedida e sogro e cunhados e primos e cardumes de familiares? Para quê?

Para que véu de noiva? Para que véu? Para que casamento, véu, noiva, por Netuno?

Para velar a honra da noiva, Plínio velou-lhe a tempestade. E, velando a tempestade, velou-se-lhe o raciocínio.