Espelho

O espelho era grande e tronava sobre a penteadeira. Sua moldura de dourada pátina era um naufrágio.

Desde tempos antigos ele acompanhava o mundo em perspectiva geométrica. De seu ponto em fuga, ele refletia, sem pudores, épocas e modas, vivos e espectros. Sem vergonha, mas mudo.

No entanto, apesar de tudo compartilhar, de tudo devassar, o velho espelho era uma pessoa muito solitária. Ele era amnésico. Não lembrava de nada, nada, nada. Nem do dia, nem da noite. Nem de sua existência.

Por isso, ele sonhava. E os menores estímulos eram férteis: cartões-postais amarelados, sorrisos imortais, pequenas frestas na porta, até mesmo sua própria imagem convexa que reverberava nas pomas lustrosas da cama. O velho espelho cansado não ligava para o passado.

Por isso, ele sonhava. E era com as ruínas quebradas na paisagem árida, o campo de lavanda, o sol cambaleando atrás do porto. Com o casamento campestre, o cãozinho adormecido no colo, a pescaria na quermesse da aldeia. Com o salão de veludo vermelho, a mesa posta, a árvore de natal brilhando.

Por isso, ele sonhava também com o reflexo do reflexo do reflexo das pomas da cama. Ele sonhava com um grande e velho espelho que tronava sobre uma penteadeira.

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