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Branco

O campo também estava branco, todo branco. Tão branco, tão branco, que nem dava para ver a fronteira entre o céu, a terra e as coisas todas entre eles.

Fazia muito frio naquele dia. Nem chovia, nem ventava, nem nada, mas o sol dava-se em tom de desafio. Quando ele despontou no horizonte, entre as duas árvores que se abraçam no leste, a claridade reverberou no gelo que aprisionava a casa. Uma bainha assimétrica enforcava-se ao longo do beiral, e as paredes escorregavam de luz.

Um fantasma cavalgava naquelas paragens e avistou o refúgio. Quando chegou próximo da cerca, apeou, acendeu um cachimbo e fumegou um bocado. Ele percorrera muitas léguas, mas não estava cansado. Só com um pouco de nostalgia ao avistar o naufrágio da mansão quase submersa.

Finalmente ele atravessou a porta e penetrou na casa. O espetáculo que se esculpiu diante de seus olhos encheu de lágrimas o peito do cavaleiro. Anos de abandono cristalizaram ambientes e memórias.

O fantasma percorreu o espaço, arrastando suas lembranças nos móveis, no piano que desafinara seus amores, no lustre bailarino de noites fulgurantes, nos tapetes que abafaram gozos proibidos.

E lá, na cômoda petrificada, diante da coleção de saudades, o conde penado deitou seu corpo oco. E chorou lágrimas de fantasma. Lágrimas sem calor.

Nas estepes de cristal que o sol empalidece, um lençol branco percorreu destroços frios. Tão brancos, tão brancos.

Ele e o resto

O mundo que ele via era todo remendado de arame quadriculado. A rua, as árvores da calçada, os passantes, os carros e outros animais. Mas, quando ele dava as costas para esse quebra-cabeças, a visão era coesa e uniforme. As plantas do jardim abraçavam-se em comunhão com a casa, o céu, a terra e tudo que ele via.

Cedo ele concluiu que, para cá da cerca, era ele e, para lá, era o resto e os outros. Sua consciência era assim delimitada pelas fronteiras da casa. Esta propriedade dava-lhe o direito de ir e vir livremente. E todos os dias ele aprendia os limites de seu ser: subir nas árvores não era possível, nem entrar na casa, quando chovia. Também não dava para voar no céu, nem morder os gatos que passeavam pelo telhado. Mas, em compensação, ele podia enterrar ossos, dormir no sol e também esgueirar-se pelas pernas que cruzavam seu caminho.

Alguns fenômenos, no entanto, eram estranhos à sua compreensão. Por exemplo, o carteiro que ora pertencia ao resto, ora a ele. Por isso, quando o cão foi invadido pela primeira vez por aquele corpo amarelo estranho, ele debateu-se todo, mordeu e conseguiu expulsá-lo. Ou, ainda, outra esquisitice da natureza ocorria quando alguém da casa saía para a rua e, de repente, era expelida de sua consciência para quadricular-se toda. Esses fluxos eram um mistério muito atraente. Por isso, ao primeiro sinal de interferência, campainha ou buzina, o animalzinho armava-se para lutar, latia, mordia o vento, pulava na cerca.

Foi assim quase a vida inteira: preservando a sua consciência e deixando o mundo, o resto e os outros, no seu devido lugar.

Só deu tudo errado, quando o cão escapou pelo portão. E foi, a partir de então, que ele soube que era possível transcender-se.

Era assustador e, por isso, ele sempre voltava.

Mas era bom demais e, um dia, foi-se o cãozinho ser um com o mundo, o resto e os outros para nunca mais voltar.