Ele e o resto

O mundo que ele via era todo remendado de arame quadriculado. A rua, as árvores da calçada, os passantes, os carros e outros animais. Mas, quando ele dava as costas para esse quebra-cabeças, a visão era coesa e uniforme. As plantas do jardim abraçavam-se em comunhão com a casa, o céu, a terra e tudo que ele via.

Cedo ele concluiu que, para cá da cerca, era ele e, para lá, era o resto e os outros. Sua consciência era assim delimitada pelas fronteiras da casa. Esta propriedade dava-lhe o direito de ir e vir livremente. E todos os dias ele aprendia os limites de seu ser: subir nas árvores não era possível, nem entrar na casa, quando chovia. Também não dava para voar no céu, nem morder os gatos que passeavam pelo telhado. Mas, em compensação, ele podia enterrar ossos, dormir no sol e também esgueirar-se pelas pernas que cruzavam seu caminho.

Alguns fenômenos, no entanto, eram estranhos à sua compreensão. Por exemplo, o carteiro que ora pertencia ao resto, ora a ele. Por isso, quando o cão foi invadido pela primeira vez por aquele corpo amarelo estranho, ele debateu-se todo, mordeu e conseguiu expulsá-lo. Ou, ainda, outra esquisitice da natureza ocorria quando alguém da casa saía para a rua e, de repente, era expelida de sua consciência para quadricular-se toda. Esses fluxos eram um mistério muito atraente. Por isso, ao primeiro sinal de interferência, campainha ou buzina, o animalzinho armava-se para lutar, latia, mordia o vento, pulava na cerca.

Foi assim quase a vida inteira: preservando a sua consciência e deixando o mundo, o resto e os outros, no seu devido lugar.

Só deu tudo errado, quando o cão escapou pelo portão. E foi, a partir de então, que ele soube que era possível transcender-se.

Era assustador e, por isso, ele sempre voltava.

Mas era bom demais e, um dia, foi-se o cãozinho ser um com o mundo, o resto e os outros para nunca mais voltar.

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