Brincadeira de esquina

Para Jean Claude

Foi numa sexta feira que tudo aconteceu. O sol ardia e as narinas penicavam. Fumaça, fuligem e aquele rugido grave dos motores. Marquinhos tinha treze anos e vendia no sinal.  Helicópteros bicolores, martelos enormes, ioiôs iluminados.

E também infláveis: um avião gorducho, um sapo transparente, um papagaio debochado. Marquinhos sambava entre os carros, desviava das motos, levantava seu zoológico por cima da cabeça para ser visto de mais longe.

Quando não conseguia vender, fazia uma cara assim, de menino pobre e maltratado, e conseguia umas moedas, uma bala. Quando não vendia nada, fazia a cara que ele tinha, de menino com fome e sujo. E quando conseguia vender um avião gorducho, um sapo transparente ou um papagaio debochado, Marquinhos não sorria nem agradecia. Corria para a calçada substituir o animal faltante e voltava para o vapor tremelicante do asfalto. Com sua cara de menino triste.

Uma garota rosada abanou para ele de dentro do carro, mas o vidro não baixou. Uma moça, jovem e dentuça acenou, mas achou muito  caro. Um senhor de bigode sorriu, mas o farol abriu. Estava difícil aquela sexta feira. Mas Marquinhos não ligava. Marquinhos não sabia nem queria ligar para aquelas notas amassadas. Ele era só um menino. Ele não ligava para os gritos do Manuel, o fornecedor de helicópteros, martelos, ioiôs e agora infláveis. Marquinhos era só um menino pobre, um menino brinquedo, um menino triste que não tem tempo para brincar.

Quando a sexta feira, aquela sexta feira acabou, Marquinhos tinha vendido três aviões e dois sapos. Nenhum papagaio debochado. Marquinhos ia apanhar. Mas ele não ligava. Ele era só um menino pobre, um menino a mais, um menino qualquer, um menino triste que não sabe nem chorar.

Foi quando tudo aconteceu. Sentado no chão, Marquinhos contava as moedas, devagar. Ele não tinha pressa para voltar. Ele não tinha pressa para o buraco do viaduto. A noite caira de repente. Viscosa, pesada, sem brilho. Marquinhos ficou ali, na rua, deserta, suja e fria, na esponja negra da noite.

Marquinhos parou de contar, e olhou para os lados. Com sua cara de menino triste. Lá estavam o avião gorducho, o sapo transparente e o papagaio debochado, conversando animadamente.

–    O que vocês estão fazendo aí, ó?
–    Ca ca ra cá, ué Marquinhos, papeando.
–    Você é papagaio, mas e o avião?
–    Vrum Vru Vrá, não sei falar mas posso voar, disse o avião gorducho.
–    Croacroacroá, não sei voar mas posso pular disse o sapo transparente.

Nesse momento, avião gorducho levantou vôo e num rodopio pousou  no ombro de Marquinhos. Papagaio debochado empoleirou-se no outro ombro e sapo transparente espatifou-se sonoramente entre as pernas do menino.

–    Cá cá rá cá, Marquinhos, você quer aprender a falar?
–    Vru, Vru Vrá, Marquinhos, você quer aprender a voar?
–    Croá croá croá, Marquinhos, você quer aprender a pular?

A noite caíra de repente. Escura, abafada, suada. Marquinhos voava, pulava e falava. Como avião gorducho, sapo transparente e papagio debochado.

–    Marquinhos cadê a grana, moleque?

Marquinhos aterrissou, pesado, no chão.

–    Só isso seu trombadinha?!

Marquinhos, o menino triste apanhou. Marquinhos, o menino feio não chorou. Marquinhos, o menino pobre não ligou.

Marquinhos, o menino triste que não sabia chorar, que não sabia brincar, aprendera a sonhar.

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