A origem dos dentes

Para lá de antigamente, quando a Terra era bem vazia ainda, quando as árvores, os rios, as rochas, o mar e o céu eram soberanos, na confluência de dois vales apoiados na carcaça de uma desértica cordilheira, vivia um povo de cantores loiros e desdentados.

Eles viviam solitários, colhendo o próprio sustento e infantando intermináveis proles de crianças cantoras, loiras e sem dentes, como eles.

Agrupados em pequenas vilas cavadas na pedra, ao longo de um rio raivoso, quando não estavam moendo tubérculos ou fazendo amor, agrupavam-se nas varandas para cantar.

Eles não eram muitos, mas, assim mesmo, um viajante perdido naquele fim-de-mundo que adentrasse o território, seria, a qualquer hora do dia ou da noite, surpreendido pela cantoria melódica que tingia o vale de reflexos sonoros.

Eles cantavam de improviso e divertiam-se respondendo às provocações harmônicas dos vizinhos, retomando estribilhos, temas, fraseados e ornamentos num incessante diálogo.

O povo loiro e desdentado do vale não aprendera a língua falada e escrita. Eles apenas comiam, amavam-se e cantavam, acompanhando o rítmo ora frenético, ora grave do rio que serpenteava entre as rochas.

Era assim desde sempre.

Até que um dia, um dia, tudo mudou, quando, no meio de uma das famílias mais numerosas, no meio das rosadas gengivas de um pequeno garoto, um dente, um único dente despontou, alvo e frágil.

Os pais do menino acharam que era uma doença, uma pústula contagiosa. Imediatamente isolaram o menino e o dente longe do alcance dos outros e principalmente dos corais avarandados da aldeia.

Mas o dente crescia a passos largos, arrastando á sua volta mais e mais dentes até formar uma coroa de esmalte que ornou em pouco tempo a boca do garoto confinado. Ninguém reparou, ninguém notou a sua falta já que era uma família muito grande e com dotes musicais excepcionais.

E a vida continuou por algum tempo aparentemente tranqüila. O povo loiro continuava cantando, fazendo amor e comendo batatas. O menino cheio de dentes permaneceu trancafiado, sem cantar, sem fazer amor. Só comendo batatas.

Até que um dia, um dia, tudo mudou, quando, no meio de uma tarde de cantorias, no meio da desolação isolada de um pequeno garoto, um soluço, um longo soluço alçou triste.

Pouco a pouco, as vozes que ressoavam no vale calaram-se, até que um silêncio pesado se abateu sobre o murmúrio solene do rio. As cabeleiras loiras cessaram seu balançar, as bocas pararam de mastigar, e os amores interromperam seus afagos. Só sobrou mesmo o longo lamento de um garoto diferente,  um garoto loiro cheio de dentes.

Era um choro diferente, articulado, carregado. Parecia que dizia algo, que significava algo. E, apesar do espanto inicial, o povo loiro entendeu. O choro do menino falava de sua tristeza, de sua solidão.

Hoje, o povo loiro do vale não canta mais, ama pouco e abandonou a lavoura de tubérculos. Hoje o povo loiro do vale é cheio de dentes, porque um dia, um dia em que tudo mudou, um garoto diferente foi abandonado.

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