A viúva

A viúva não tinha do que se queixar. Ainda restavam-lhe longos anos de vida, uma grande disposição e formosura suficiente para reconstruir-se um destino.

Quando seu marido foi atropelado, ela inicialmente perdeu o juízo e a compostura. Todos louvaram a demonstração de perda e mais ainda o extraordinário esforço de exibicionismo. Embora fingido – todos sabiam que seu casamento não era um idílio açucarado –, era de bom tom demonstrar claro apreço pelo falecido.

Mas, consciente do delicado tecido de fofocas no qual ela bordava seu ócio, a viúva recolheu-se para uma desejável e piedosa quarentena nas terras herdadas do falecido. Em meio a podas de begônias, tranças em campesinas e geléias de morango, seu nome, seu título e sua disponível fortuna seriam esquecidos, submergidos sob outros escândalos, passatempos e cavalgadas beneficentes.

Recolhida em seu pagode flutuante nos nenúfares, ela lia a condessa de Ségur, as irmãs Brontë, Hildergard Von Bingen, Anaïs Nin para acalmar sua abundante gulodice. Meditando aos pés do pároco surdo, ela expiava suas memórias insaciadas. Caminhando nos bosques desertos, desmaiando nas penas de gansos ou enchendo a lata na adega centenária, a viúva aplacava seus desejos censurados.

O retiro durou tempo de mais, pois, quando se viu sonhando com tabernas sujas, ruas bêbadas e marujos russos, ela retornou do exílio.

Foi em grande estilo que ela organizou seu début. Enviou cartas e presentes aos potentados, contratou os mais inventivos artesões e arquitetos, magos e outros charlatões, deitou-se por semanas com renomados maquiadores, estilistas, estetas e luxuosos picaretas, para refazer-se uma beleza irresistível. E quando as revistas já não tinham mais o que antecipar, quando os paparazzi deram chiliques e as madames faliram suas faraônicas mesadas, a viúva anunciou seu noivado a toda sociedade.

A festa foi retumbante, extraordinária, fantástica, memorável, um escândalo, um “tudo”. Detalhes inimagináveis tinham sido previstos: cisnes deslizando em lagos de mel, tapetes de pétalas de ouro, cascatas de trufas, fontes polifônicas, fogos boreais, caravanas de faunos flutuantes, danças berberes, celtas e swahilis, milenares cânticos babilônicos, declamações mântricas e chuvas de herméticos filtros.

No meio da madrugada, finalmente, a viúva surgiu com o eleito. A turma do deus-me-livre sentiu-se abusada e os minha-nossa-senhora fremiram de inveja. Era um negão cabelo ruim, nariz de boi pisou, beiçola indecente. Nem título, nem nome, nem fortuna, nem pose nem ciúmes, nem luxo nem ócio, nem partidas de críquete nem cruzeiros mediterrâneos, nem mausoléus nem sogra, nem chiqueza nem cashmeres ton-sur-ton, nem implante nem Viagra.

Um negão irresistivelmente sazonal.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Connect with Facebook