Monthly Archives: January 2006

A castração do improviso

Uma vez alguém perguntou a Einstein: “Vem cá, como é seu método? Você vai tendo idéias e anota tudo num caderninho?” E ele respondeu: “Ah, não precisa, não. Eu tenho tão poucas idéias, que guardo elas na cabeça. Aliás, só tive umas três”.

As idéias seminais, revolucionárias, que quebram barreiras e põem todo mundo de quatro, quantas temos na vida? Se tivermos três, já somos um Einstein.

Pois existem essas idéias transformadoras que aterrissam não se sabe bem como, onde, através de que médium e em que momento. A essas idéias eureka, daremos o nome de idéias acidentais.

Mas existem outras idéias que, apesar de serem menos primordiais, não são menos importantes. São aquelas que despencam quando você está escrevendo, desenhando, falando. As idéias pequeninas, que nascem do próprio fazer. É na hora que você está buscando uma das grandes, que elas aparecem e dão o tempero irresistível ao ato de criar e de apreciar a criação.

Do que você gosta mais n’ As Meninas de Velázquez? O pintor retratado que retrata o pintor que pinta? Quem é aquele pintor e quem pintou o pintor, se o pintor está pintado? Taí uma idéia fundadora. Eu particularmente gosto mais da fuça do cachorro sentindo arrepios de prazer com o pé da garota acariciando seu dorso.

São essas pequenas criações que divertem, que emocionam, que fazem chorar ou rir. São elas que nos dão uma irresistível vontade de ver de novo, e de novo, e de novo sem saber exatamente por quê. A elas daremos o nome de idéias incidentais.

Na propaganda não é diferente, não.

Ter uma idéia big bang é o estado da arte, o grand prix. Quantas você conhece assim? Seja sincero: quantos acidentes desses você citaria? Dois? Três?

Mas nem sempre a “ideiona” surge, e nem sempre ela é sequer desejável. Às vezes basta ser correto, falar o que tem que ser dito com originalidade, leveza, graça, elegância, pertinência e diferenciação. Mas essa correção não faz boa propaganda. Só correção não basta.

É nesse ponto que surge um problema. Pois vamos nos debruçar um instante sobre o justificado processo de trabalho de colocar uma campanha no ar.

Primeiro vem o briefing que, por definição, tem que ser correto, informativo e inspirador. Vamos supor que isso seja fácil (embora não seja, mas isso é outra questão).

Do briefing nascem idéias e das idéias, campanhas.

Supomos ainda que todas elas sejam submetidas à investigação do consumidor (mas isso geralmente não acontece, porque a investigação começa nos “achismos” inevitáveis).

O que acontece quase sempre é que as campanhas corretas são aprovadas com o lado direito do cérebro. As geniais são polêmicas; portanto, amadas por uns e odiadas por outros.

Pois vamos imaginar primeiro que uma campanha genial passou no teste. (Isso é raríssimo. Quem é que quer se arriscar com ódios, por menores que sejam?).

A campanha é produzida como foi contada, pesquisada e “aprovada”. A idéia é tão, mas tão genial que dispensa qualquer frufru, qualquer escapadela, qualquer pimentinha, qualquer piada. Resultado: vai para o ar um E=MC2. Dizem que só três mentes brilhantes entendem a genialidade dessa idéia dita dessa forma.

Mas provavelmente o que irá ser produzido são as idéias corretas. Mas, por favor, o que foi aprovado foi aquilo que estava no roteiro, no storyboard, no animatic. Não vamos inventar. Resultado: vai para o ar uma campanha sem charme, sem pimenta, sem idéia – nem acidental, nem incidental.

Ou então, o que vai para o ar é o refinamento do refinamento do que foi aprovado nas pesquisas, com todos os detalhes corrigidos e burilados, como uma receita de bolo. Casting perfeito, tomadas perfeitas, produção perfeita, diálogos perfeitos, trilha perfeita, edição perfeita.

E tanta perfeição, tanta correção, dá nisto: uma propaganda chata, informativa, banal. Perfeita, mas chata. Sem surpresas, sem acaso, sem improviso.

Bach compunha de maneira tão livre que eram seus intérpretes que criariam – sim criaram – sua obra. Os ornamentos, tão caros ao barroco, sequer eram assinalados. Sua execução inventiva cabia aos executantes, ali, na hora, ao sabor do humor e da augusta inspiração do momento. O velho mestre sabia que não se pode encarcerar uma obra. Ela nasce na cabeça e continua se expandindo à medida que é executada.

Mas o que nos censura pela tal liberdade?

Não, não são os testes, as investigações, as pesquisas. Não são as metodologias matemáticas que aplicamos. Elas são inevitáveis. Elas são testes de laboratórios, esboços,
ensaios gerais.

O que nos castra é a descrença na intuição. No acaso. Não cremos que Deus joga dados.

O que nos frustra mais ainda é que, no laboratório, a campanha é vencedora, mas na vida real, no ar, ela é uma incógnita.

Sem falar das duas dimensões fundamentais do marketing moderno: a insegurança (medo) e o prazo (tempo).

Temos medo de liberar, para a sanção pública, idéias incidentais não testadas e unanimemente aprovadas. E, como não tempos tempo para testar tudo, desistimos delas.

Mas se acreditamos no poder das idéias, das grandes e das pequenas – e para isso basta ser honesto – então vamos ser menos caxias, menos CDF. Vamos investigar, sim, antes, durante e depois, mas vamos referendar apenas o fundamental, o que está no roteiro. Vamos liberar a inspiração que surge na hora, aquela que, sem subverter o central, cria os indispensáveis improvisos.

Criar não é só um ato deliberado, racional, premeditado. Criar é também dar chance ao acaso, ao incidente.

É acaso da divina providência.