A chaleira

–    Pai, pai! Adivinha?
–    Que foi, filha?
–    Fui escolhida, fui  escolhida!
–    Trouxe o pão?
–    Sim, pai.
–    Dá aqui.

Célia recolheu sua mochila e foi até a cozinha. Tinha louça para lavar. E Vladimir estava com fome. A mãe não tinha chegado ainda. Para quem ela iria contar?

Já estava escuro, quando a menina terminou o serviço de casa. O pai estava dormindo, bêbado. Vladimir tinha aquietado e nada da mãe. Célia saiu e caminhou um pouco sob a luz crua da rua, vazia e triste.

–    Oi, Célia.
–    Oi.
–    Seu pai tá em casa?
–    Tá dormindo.
–    Bebeu de novo?
–    É.
–    Ele me deve uma grana, o inútil.
–    Eu sei, Bill.
–    Cadê sua mãe?
–    Não chegou.
–    Então, tá. Vai para casa, menina, a rua é lugar de vagabundo.
–    Não enche.
–    Eu hein, o que deu em você?
–    Nada.
–    Aconteceu alguma coisa?
–    É.
–    Que foi?
–    Eu fui escolhida lá no concurso da escola.
–    Puxa, que legal! Parabéns.
–    Tá.

Bill era o vizinho camelô lá na Central. Gostava de Célia. Tinha gente que achava aquela amizade estranha. O pai não gostava de Bill. Mas ele sempre ajudava. Era um cara legal.

–    E o que você ganhou?
–    Nada.
–    Ah.
–    Quer dizer, mais ou menos

Bill sentou na calçada, do lado da menina, na poeira.

–    Desenbucha.
–    É que agora vai ter a final. Tenho que ir, mas não vai dar.
–    Por quê?
–    Por que não é aqui. É lá na Argentina.
–    Que legal! Quando é?
–    Mês que vem, mas não vai dar.
–    Por quê?
–    Preciso dos documentos.
–    Para viajar?
–    É.

Bill pegou Célia pela mão e arrastou ela para dentro de casa.

–    Vagabundo, acorda.
–    Que foi?
–    Onde estão os documentos da menina?
–    Documentos? Que documentos? O que você está fazendo aqui? Vou te pagar.
–    Onde você colocou os documentos?
–    Pra quê você quer isso?

Escondida atrás da porta, Célia olhava para o chão, varrendo a terra com o pé.

–    Você não viu que a sua filha ganhou o concurso lá da escola?
–    Ganhou?
–    Ganhou, Gordo, ganhou! Ela precisa viajar para a final e precisa dos documentos.
–    Célia, minha menininha, cadê você?
–    Aqui pai.
–    Vem aqui para o seu pai te abraçar.

Célia fez careta de nojo quando o pai envolveu seus ossos entre as mãos sujas.

–    Eu acho que eles estão ali, em algum lugar. Cadê a Maria?
–    Não chegou, pai.
–    Ah. Mulher inútil.

A mãe trabalhava longe e nem sempre voltava para casa. Às vezes só vinha para trazer um pouco de dinheiro, brincar um bocadinho com Vladimir e brigar com o pai. Nessas horas, as duas conversavam. Célia sentia falta da mãe.

Em meio aos choros de Vladimir, viraram a casa de cima a baixo. Não tinha muito onde procurar.

–    Lembrei. Estão na chaleira!
–    Na chaleira?
–    Sim, na chaleira, é lá que a Maria guarda os documentos dos meninos.

Mas a louça do casamento sumiu, o vestido de noiva também. Tudo sumia na casa do Gordo. Ele vendia. Sumiu o relógio do avô, a bicicleta de Célia. Ele bebia. Sumiu o dinheiro emprestado por Bill. Até a mãe sumiu.

Àquela altura, todos choravam mais alto que o pequeno Vladimir.

–    O que está acontecendo aqui?
–    Oi, Maria.
–    Mãe!
–    Filha, o que houve?
–    O pai vendeu a chaleira!
–    Mulher, onde está a chaleira?
–    Maria, a chaleira?

Todos olhavam, petrificados para a mãe com os braços carregados de mantimentos.

–    Vendi.
–    Vendeu?
–    Vendeu?
–    Vendeu?
–    Vendi. Mas comprei carne, arroz, feijão. E isto aqui.

Neste instante, Maria retirou da sacola uma boneca enorme, linda, cor-de-rosa. A menina sorriu.

–    Mas e a chaleira? E os documentos?
–    Que documentos?
–    Os documentos da menina para ela viajar para o concurso?
–    Concurso?
–    Sim, ela ganhou o concurso e não pode viajar, porque você vendeu a chaleira dos documentos!

O Gordo gritava, Bill se aproximava da porta para ir embora. Nada mais a fazer.

–    Mas quem disse que os documentos estavam na chaleira?
–    Não?
–    Não. Estão numa caixa no armário.

Maria foi até lá e, depois de instantes, virou-se em lágrimas. A caixa do vestido de noiva não estava mais lá. Bill deu de ombros e saiu pela porta da casa.

A chaleira, o vestido, a viagem, tudo sumira, transformado num sono de bêbado e um prato de feijão.

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