A naja tricota

Ao abrigo dos olhares, a naja real tricotava, tricotava, tricotava, um longo cachecol de jacquard.

Isso não pegava bem para sua reputação. Afinal de contas, suas exibições públicas eram sempre envoltas em mistério e tensão. Ninguém poderia imaginar que ela, o terror do reino do marajá, temida muito além do telhado do mundo, fosse afeita a tão prosaico e vulgar passatempo.

Mas de verdade, nunca ninguém se preocupou em entender direito o mundo das cobras. Ninguém nunca chegou perto, no pé do ouvido, ali, cara a cara, mão na mão, ombro contra ombro. Nunca ninguém ouviu uma cobra suspirar, abrir-se, desabafar.

Assim é com a espécie inteira. Por vezes, venerada e respeitada, como era o caso da naja real, mas invariavelmente mantida à distância, na solitária do mundo.

Cobras, najas, víboras e todas os seres rastejantes são animais complexos e sensíveis. Muito sensíveis. Por esfregar a barriga no solo, por rebolar incessantemente entre os imundos eflúvios da natureza e ainda pela proximidade que têm com as dimensões subterrâneas, as cobras armazenam, sem escape, todas as baixezas da vida na Terra.

Como manifestação de defesa, quase involuntária, elas destilam, é certo, preciosos venenos. No entanto, é reflexo e não, índole. E essa catarse atávica, muitas vezes letal, é fonte inesgotável de arrependimento, culpa e depressão para as cobras.

São seres banidos. Em seu exílio da elite da criação, um imenso frio de abandono habita suas almas. Frio gélido, tenebroso, insuportável. Um frio que é matéria e não, estado.

E, para exacerbar o sofrimento das cobras e até das najas, nobre estirpe da raça, muito mais do que os cangurus, os flamingos, as girafas, as top models e as diafánas mulheres de Modigliani, seus pescoços são intermináveis.

Por isso, frio, mais e mais frio.

Eis o mistério do mundo das cobras: para abrigar a alma proscrita, elas tricotam, tricotam, tricotam, longos cachecóis de jacquard.

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