Monthly Archives: August 2008

Pesquisas terráqueas

B55 acabou de cair na Terra, depois de uma meteórica viagem oriunda de Wig, um asteróide muito além da Via Láctea.

O espaço em que aterrissou era reduzido, escuro e desconfortável. Muitos pés balançavam de um lado para o outro embaixo da mesa de reunião, e B55 se desviava penosamente dos chutes.

Quando finalmente encontrou um lugar mais seguro, ele acocorou-se atento às movimentações e às falas.

Lá pelas tantas, B55 sentiu sono e deu uma longa cochilada que só terminou quando Marília agachou-se para apanhar sua bolsa. A reunião tinha terminado.

– Ei, o que é você?
– Eu não sou uma coisa.
– Não? Então quem é você?
– B55, de Wig
– O que faz aqui?
– Vim pesquisar
– Eu sou de pesquisa também.
– Coincidência. E o que você pesquisa?
– Pesquiso os hábitos dos consumidores
– Consumidores?
– Sim, pessoas em geral que potencialmente podem ser nossos clientes
– Entendo. Mas por que você quer saber os seus hábitos?
– Ué, primeiro para encontrá-los.
– Eles se escondem?
– Às vezes, mas nossas ferramentas permitem desentocá-los através de técnicas de sedução.
– Você seduz as pessoas?
– Claro! Com mensagens adequadamente “adressadas”, é possível “clarificar” com muita “sutilidade” e “atenciosidade” os impulsos mais profundos dos nossos targets.
– Ummm. Acho que entendo. A partir dessas pesquisas, vocês encontram as pessoas para falar com elas. Sobre o quê?
– Eu poderia dizer que é sobre as virtudes e atributos de nossas marcas, serviços e produtos, mas já evoluímos.
– Já?
– Muito! Agora não falamos mais das nossas marcas, falamos dos nossos consumidores, sobre o que eles querem, sonham, aspiram, desejam. Somos focados nas emoções dos consumidores.
– Evolução?
– Claro! Antigamente, nós pesquisávamos o DNA das nossas marcas; agora, somos to-tal-men-te centrados no consumidor.
– DNA? Marcas têm DNA, como humanos?
– Têm, mas isso não tem importância mais. Evoluímos.
– Para pesquisar o DNA dos humanos?
– Pode-se dizer que sim, ou se preferir, o DNA das emoções dos consumidores.
– E para que serve isso mesmo?
– Para saber o que dizer para nossos consumidores
– E o que você diz para eles?
– O que eles querem ouvir.
– O que eles querem ouvir?
– Que nós os amamos.
– O que eles querem ouvir?
– Que nós entendemos eles.
– O que eles querem ouvir?
– Que nós existimos para eles, entende?
– O que eles querem ouvir?
– Já falei.
– Mas o que eles querem ouvir?
– Que eles têm que comprar nossas marcas, diabos!
– Agora entendi.
– E você, o que pesquisa?
– Piadas terráqueas para meus amigos. Obrigado!

Marcas pra que mesmo?

B52 chegou do Asteróide Zig há meia hora. Ele aterrissou no quintal de um tal de Teixeira, à tarde.

Depois de chacoalhar a poeira estelar, para recarregar as baterias solares, deu um pulo no bronzeamento artificial de Teixeira, enquanto se atualizava sobre seu anfitrião no Zigpídia.

“Interessante, muito interessante, refletia B52. O tal Teixeira está à frente (lidera, idealiza) de muitas estratégias (técnicas, táticas e planos de ação) mercadológicas (que dizem respeito ao mercado de compra e venda) que envolvem (que cobrem) campanhas (temporada de guerra) publicitárias (de coisas que são publicadas) para grandes marcas (pegadas, ou referente à denominação simbólica de um produto ou serviço). Marcas? Vamos investigar.”

Mais tarde, deambulando pela casa do Teixeira, B52 pesquisou com muito afinco o que seriam essas tais marcas. Encontrou muitas e de dois tipos.

As do primeiro tipo na sua maioria provinham de vestígios humanos. Pareciam ser dejetos de matéria orgânica em decomposição: de pele, de secreções e de outros que tais que B52 armazenava cuidadosamente para análise posterior.

As do segundo tipo eram muito mais uniformes, pouco variadas e, portanto, menos interessantes. Todas identificavam aquele monte de objetos inanimados que compunham o lar de Teixeira. Elas “marcavam” tudo, embora esse tudo parecesse muito parecido e com interesse científico muito duvidoso.

E tropicando aqui, xeretando acolá, B52 acabou pisando num objeto não identificado que, por ação de causa e efeito, acionou outro que acendeu e começou a falar. B52 fascinou-se com a luz que irradiava de lá, cheia de vida, cores e sons. Demorou-se por ali, deslumbrado.

E foi nesse estado de contemplação estática que Teixeira o encontrou.

O publicitário não se acanhou e sentou-se a seu lado, cansado de tantas frentes estratégicas e campanhas memoráveis.

B52 despertou de sua letargia e, com os discos rígidos completamente lotados de tanta armazenagem, entregou-se:

– O que são marcas?
– Ora, marcas são representações simbólicas de um produto ou serviço.
– Por certo. Isso eu entendi. Mas simbolizam o que exatamente?
– Simbolizam os atributos racionais e emocionais associados aos produtos e serviços.
– Racionais como?
– Como, por exemplo, “conforto e velocidade” para um carro, “poder de absorver” para um lenço, “limpeza eficiente” para um sabão de roupas. Mas essas não são importantes. Ninguém mais liga para atributos racionais.
– Não?
– Não. Ninguém compra um carro para ir de um lugar ao outro, nem um lenço para assoar o nariz e muito menos um sabão para lavar uma roupa.
– Não?
– Não. As pessoas compram um carro para se sentirem poderosas, um lenço para dar um toque de feminilidade, um sabão para se sentir vivo.
– E por que as pessoas compram um carro, um lenço e um sabão?
– Elas não compram carros, lenços e sabões. Compram marcas.
– Marcas?
– Marcas são a virtualização arquetípica das atitudes sintomáticas das pessoas, as manifestações das personalidades por símbolos interpostos, visando relacionar e situar o homem moderno no seu ser/estar, frente à sociedade, ao outro, a seu destino incerto, blábláblá.
– Marcas?
– Sim, marcas são o fascínio da humanidade, o devir capitalista mais-bem sucedido da história moderna, blábláblá.
– E o que VOCÊ faz?
– Ora, conto tudo isso para as pessoas e elas a-do-ram!
– A-do-ram?
– Sim, compram adoidadas.
– O quê?
– Ué, as próprias.
– Compram poder, feminilidade, vida?
– Exatamente!
– Elas compram onde?
– Eu poderia dizer “nos pontos de distribuição das marcas”, mas prefiro dizer “nos pontos de contato”
– Contatos?
– Sim, nessa televisão por exemplo.
– Eu posso comprar aqui?
– Praticamente.
– E o carro, o lenço, o sabão?
– Mas quem liga pra isso, meu caro? Não importa. Você vai lá na loja, mas já comprou aqui.
– Já?
– Já. Só falta você dar o dinheiro. E não se esquecer do meu.

B52 foi-se da Terra no mesmo instante, para nunca mais voltar. Voltou para Zig porque lá tem teletransporte para todo canto, ninguém fica com nariz escorrendo e muito menos usa roupas para esconder as vergonhas.

Indentidade de rei

O Brasil era umas cartas, umas fotos e uma mãe.

Na escola, eu dizia que era americano e escondia o “do sul”, falava “inglês” com meu irmão, recitando as poucas palavras que conhecia do português formando incompreensíveis diálogos:

– casa, mamãe carro avião bom dia?

e ele respondia

– mingau, papagaio hora de dormir, boa noite!”.

Os meninos ficavam de boca aberta.

Minha madrinha veio nos visitar. Foi pegar-nos na escola. Ela era brasileira, portanto negra! Que excitação. Chamei os colegas para ver a brasileira, portanto negra. Decepção absoluta com a branquela de olhos azuis que veio nos pegar na escola.

Esse era o meu Brasil.

Na copa de 70 eu tinha 6 anos. Minha mãe convidava amigos brasileiros para ver os jogos em casa, em Paris. Era uma festa para adultos, e as crianças já estavam dormindo quando os gritos estouravam.

– Meninos, acordem. Quero mostrar uma coisa pra vocês.

A excitação de tanto privilégio venceu o sono e adentramos a sala toda decorada, muita gente feliz e festejando em volta da TV. “É campeão, é campeão”. Uma frase nova para meu dicionário de “inglês”?

Em cima do aparelho, uma enorme foto de um negro, portanto brasileiro, tronava. “Pelé é o rei!”

Dia seguinte na escola e eu já sabia o que era ser brasileiro. Era ser campeão. Tinha um rei: Pelé.

E todos os meninos a me perguntarem se eu era mesmo brasileiro e eu respondia em bom português “mas é claro, oui bien sur!”

Décadas depois, na F/Nazca já. Um cliente, o Zip Net. Reunião de rotina. Saio da sala do cliente e ouço uma voz, um apelo, uma rouquidão.

– Tonico, quem ta aí? Não me diga que é o Pelé.
– Ele mesmo, quer conhecer?

Antes mesmo que eu pudesse responder um óbvio “imagina, não se incomode” lá estava o homem, o rei, apertando minha mão.

Quase desmaiei de emoção.