Decifra-me ou te devoro

Alguém tem dúvida de que o mundo está mudando numa velocidade inédita? Que estamos procriando demais? Que os recursos estão escasseando? Que jogamos fora quase tudo que consumimos e que não tem tanto lugar para tanta merda? E pior, que um reflexo condicionado nos faz acelerar ainda mais, procriar mais, destruir mais, consumir mais, cagar mais?

E esse reflexo tornou-se a base da pirâmide de necessidades do ser humano no século XXI. É ele que nos tira da cama todos os dias, nos faz olhar o mundo com retinas calcificadas, nos faz rir e chorar, esperar e sofrer.

Uma velha senhora me disse certa vez, quando me via aflito e estressado: “Seu problema é um problema que é?” Eu obviamente não entendi nada, porque esse vício que nos habita e nutre também faz isso com a gente: embrutece. Então, ela acrescentou: “Existem problemas que são problemas e há os que nós criamos. A gente tem que separar um do outro para só lutar pelos primeiros.”

E parece, parece, que nós criamos mais problemas do que encontramos. Nós. Porque mais ou menos quatro quintos dos outros seres humanos sobrevivem lutando contra aqueles que encontram.

Nós criamos muitos problemas e quase tudo que fazemos, além disso, é criar soluções para os problemas que criamos.

Inventamos os meios de comunicação, por exemplo, e não foi só para resolver nossa atávica solidão (um real problema), mas para reverberar nosso próprio discurso. Diante da aparente necessidade de falar para os outros, o que queremos é uma espécie de masturbação intelectual ou emocional. E como gostamos disso.

Inventamos a Internet, por exemplo. Não foi só para democratizar e fomentar o conhecimento (uma real necessidade), mas para gozarmos da nossa própria voz e ejacularmos nosso próprio poder.

Assim, passada a euforia e a propaganda excitada sobre as enormes mudanças de paradigmas, as colossais perspectivas e incomensuráveis esperanças que as plataformas digitais (incluindo a Internet) proporcionam, é hora de também considerar o que se esconde por detrás desse tesão.

Em larga medida, a gente está substituindo o aprendizado e o saber pela possibilidade do saber e do aprendizado. Antes eu precisava aprender para ser. Hoje, basta eu saber que eu posso saber quando eu precisar saber. Que é fácil, rápido, digerido e de graça. E esperando pelo gatilho da necessidade, a gente se distrai e afunda na preguiça.

Estamos também substituindo o olhar crítico, analisado, referenciado, pela opinião instintiva. Antes, para eu dizer e divulgar, eu precisava pesquisar. Hoje, basta eu escrever o que dá na veneta e sei que isso é uma bola-de-neve que se transforma em cataclismo, por força e obra de um incontrolável acaso.

Em tempos de enciclopédias livres, o conhecimento “a priori” é inútil. A memória é inútil. No limite, qualquer esforço intelectual é inútil.

Em tempos de jornalismo colaborativo, a opinião “com fonte” é acessória. A comprovação é inútil. No limite, a História é inútil.

É como se estivéssemos experimentando um novo mundo. Deliciosamente entorpecente e aleatório.

A internet é a mais tentadora das esfinges.

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