Papagaiada

Para Cumpadre Mário

Ele voara muito, por cima de florestas, cidades, campos e colinas amassadas.

Vez por outra, pousava para descansar e refletir. Gritava em voz alta: “Preguiçoso, preguiçoso Mané” ou “Alô, Jovina, telefone!”, ou ainda “Melchior, você é o maior!”, “alonzanfandelapatri”.

Lembranças de outras terras: “Acorda pra cuspir, Ignácio”, outros laços: “Te amo, flor”, outras lições: “Un, deux, trois, chassé croisé, Manon”, e outras gaiolas: “Fome, Benedita” – ele estava velho e cansara da vida que se repete, repete e emborca de tanta preguiça. Por isso, fugira, numa manhã igual a todas as outras: “Lá na gaiola, fez um buraquinho, voou, voou, voou, voou. A menina que gostava tanto do bichinho, chorou, chorou, chorou, chorou”. Ele cansara daqueles mesmos sorrisos: “Dá o pé, dá o pé”, daqueles mesmos galos: “Cocoricó, acorda preguiçoso”, daqueles alpendres ventosos: “Frio, tô com frio”, da vida de papagaio repeteco: “Papagaio repeteco, uma ova!”

Sobrevoando as matas, as cidades e as gentes de toda espécie, a ave falante repetia “Nunca, nunca, nunca mais, nunca, nunca mais”.

E foi assim, voando longe, que, numa tarde, o louro aterrissou numa palmeira barulhenta. Ele ajeitou o topete, esfregou o cocoruto num galho e, tremelicando o pescoço, observou: no meio das folhagens, uma revoada de sabiá conversava. Uma algazarra, uma fofocada, uma babel. Ele bem que tentou entender e se entreter, mas os primos não falavam coisa com coisa, era um cré sem cré ensurdecedor.

Enfim, era sua hora: sonhara com aquela liberdade de criar. Uma plateia selvagem, primitiva, sem traquejo nem requebro. Uma turba que não sabia que papagaios são papagaios, ou seja, só sabem papaguear.

Impostando a voz, ele recitou:

– Abaixe a tábua!  Lave as mãos! Tomou banho, Zé Caribé?!

O frufru dos sabiás não ensaiava reação.

– Fogo, fogo na canjica! Apeia, pirulito! Cabulou de novo, Marquinho?

A cacofonia redobrava de intensidade. O louro ensaiou em prosa e verso “baratinha quando nasce”, “ouvido do ipiranga”, “ave Maria cheia de garras” e ninguém deu bola para sua eloquência.

E quando ele já desesperava de ter voz naquela barbárie sem pé nem bico, um sabiá poliglota aproximou-se e sentenciou:

– “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.”

O Louro acocorou-se num canto do galho e fundo, fundo, lá no fundo de seu coração, de saudade soluçou, soluçou e soluçou um chororô sem fim.

E de tanto soluçar, a colônia de sabiás apelidou o exilado, liberto, repeteco, tagarela e soluçante: papagaio!

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