Transfusão de samba

Para André

Era um vampiro como outro qualquer.

Como todos, tinha lá suas restrições, seus reflexos e charmes irresistíveis: não jogava altinha na praia, não via corpos soltos havia quase dois séculos e disfarçava sua libido permanente com o mais sofisticado dos
guarda-roupas. Suas noites eram sempre muito animadas, de balada em balada, de cama pra cama, de bebedeira em bebedeira. Era um depravado conquistador e um evangelizador tenaz. Seu charme ancestral, sua polidez esmerada e erudição clássica faziam o mais escolado dos humanos babar-se em súplicas de “Mais!”

Certa vez, lá pelas tantas da madrugada, lá estava nosso vampiro todo chique, numa roda de samba. O maestro de salas aveludadas não tinha preconceito.

Aquela noite, era véspera de carnaval, ensaio para gringo, patrocinado por uma grande empresa inglesa de amortecedores, com o objetivo de experimentar o novo molejo de seus produtos na pele de seus clientes, fornecedores e autoridades. A quadra estava cheia de samba para inglês ver.

Depois de um tempo, o vampiro foi perdendo o entusiasmo: aquele rebolado de bundas brancas dava-lhe enjoo. Com exceção de três mulatas sambadas, a paisagem era de triste descompasso, um sem-jeito desolador, uma bananada sem borogodó.

Enfadado, ele desafogou a gravata, arregaçou o fraque, esponjou a testa numa renda alva como a tez da ruiva desengonçada que piscou em sua direção, acendeu um havana e saiu do barracão.

Meditava: “Qual seria a próxima escala? Uma rave em Bangu? Um inferninho de Copacabana? Um clube burguês? Um funk além-túnel? Um madrigal na mansão de uma duquesa falida?

Foi quando emanou de um beco escuro um batuque singelo, uma jinga gostosa, um baticudum suado.

O vampiro ajeitou o fato, abriu três botões da camisa, dobrou a perna e os braços para evidenciar atributos: lá vinha coisa boa, carne fresca e um banquete promissor.

Lá vinha Maria Escopeta, espetáculo! Tremelicou para fora do beco cantando, exalando ritmo e ouriço por todos os poros.

Nosso ser ficou catatônico, ofegante. Depois do espanto, perdeu o prumo, a pose e a compostura: atirou-se na negra. Sugou-lhe até a última gota de samba das veias.

Foi assim que nosso vampiro aposentou os caninos, deixou de frescura e até hoje toca zabumba no cemitério, até o sol raiar.

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