Nada como não se ser-se

De manhã, quando acordava, corria para o espelho do banheiro.

E conversava longamente com seu avô:

– Vô, lembra daquele dia que a gente fazia barragem no riacho atrás de casa? Lembra quando alagou o jardim? Lembra da bronca?

Com a vó:

– Vovó, me leva para colher ervilha no jardim? Quantos ovos você acha que tem hoje? Se eu acertar, você faz bolo cru só pra mim?

Com o tio ele só pensava, não falava:

– Que diabo tem de tão importante em calçar uma meia? Primeiro tem que dobrar de jeito a enfiar a ponta do pé, esticar tudo certinho e ir desdobrando, até ficar que nem pele.

Para o pai, ele queria dizer coisas, e sempre mudava de assunto:

– Vamos de carro? Posso ir na frente? Posso hoje?

E lá dentro, remoia:

– Conta de novo aquela história dos índios? E aquela outra quando você brigava nas festas? De novo, de novo.
Com a mãe, ele sempre queria dizer a mesma coisa, mas ficava com vergonha:

– Te amo, te amo, te amo, te amo, te amo. E que mais? Ué, te amo.

Não faltava assunto. Nunca.

O reflexo do espelho, que não era ele, mas os que eram um tantinho dele. Saudade. E eles que eram o que os outros tinham sido. Saudade. E nós que somos o que outros hão de ser, no espelho, um dia. Que saudade danada!

0 thoughts on “Nada como não se ser-se

  1. O menino que corre não sou mais eu, já me ultrapassou
    o velho com livros nas mãos ainda não sou eu, ja me atrasou

    preciso reler os vazios da minha pequena biblioteca
    Tudo era de mentirinha, menos o meu Deus, poque eu sou esse, pois ser só eu as vezes peca, as vezes frusta, as vezes falta.

    Quando não sabia fazer o dever, meu pai me emprestava sua sabedoria dos homens adultos.

    Quando não sabia como resolver as coisas, fechava os olhos e me concentrava no meu país das maravilhas.

    Sou um cavalo qualquer perdido no mundo cão.
    Por onde anda quem me ensinou a rezar?

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