Michael Jackson morreu antes de ter morrido

Quando Napoleão voltou de sua campanha na África, ainda como general, sua máquina de propaganda tratou de enviar notícias de suas vitórias. Ele apanhou feio em algumas batalhas, mas, mesmo assim, entrou em Paris como filho pródigo da Revolução, coberto de glórias. Afinal de contas, a verdade sempre foi – e sempre será – um fator diretamente proporcional à intensidade e à velocidade das notícias, mesmo quando elas são falsas.

Pouco mudou de lá pra cá: quem fala primeiro ganha. Na pior das hipóteses, 15 minutos de fama. Na melhor, reputação ilibada.

Michael Jackson morreu uma hora antes no site de celebridades TMZ do que nos principais veículos de comunicação. Se ele morreu mesmo, de verdade, pouco importa. O que importa é a expectativa de sua morte. É isso que segura a audiência, é o que dá fome de notícia, é o que excita o planeta. Depois do fato consumado – ou seja, quando a notícia virou unanimidade – a audiência desloca-se para outras mentiras temporárias: teria sido suicídio? Ou autodestruição? Os filhos são dele mesmo? Ele ainda é rico?

É na construção da expectativa da verdade, na criação de mentiras temporárias que reside o segredo da audiência. E quanto mais quente for a mídia, mais importante essa máxima. Na Internet, na TV, no rádio.

Entre a barriga e o furo, o furo, mesmo que ele seja uma potencial barriga. Depois desmente-se, relativiza-se, justifica-se, aluga-se outro furo e administra-se outra barriga.

Já estou vendo os bem-pensantes de plantão me xingando: “E a ‘credibilidade’? A ‘respeitabilidade?’”

Claro que de vez em quando é bom acertar, isso é óbvio. Mas não é disso que estamos falando. Jornalismo é diferente de História. E tampouco vamos filosofar se isso é bom ou ruim, se a verdade existe ou é uma quimera.

Por que a Internet enferruja as mídias antigas? Por que as mídias antigas tornam-se velhas? Há muitos argumentos; um deles, porém, pouco debatido, consiste nessa lógica da credibilidade, da checagem de fontes, das regras éticas. Na Internet parece haver uma licença para ser menos realista que o rei, porque a lógica não está mais no furo, mas na precedência do furo.

A noticia, o fato, o furo em si não interessam tanto quanto a história que o precede. É o suspense que segura a audiência, e não a morte da bezerra. E se não confirmarmos sua morte, o furo passa a ser sua ressurreição.

0 thoughts on “Michael Jackson morreu antes de ter morrido

  1. Não me contem se descobrirem a causa da morte do Sr. Jackson

    Michael havia deixado de ser pessoa humana tal como somos. Fazia tempo que se tornara mito. Não era mais sujeito da História. Era personagem de muitas estórias (aproveito a diferença conceitual aprendida com o amigo Rubem Alves). Mitos não têm eventos de vida explicáveis. Mitos servem para povoar nosso imaginário do jeito que os desejamos. Conhecer causas de morte só se aplica a seres biológicos, documentados no campo da Natureza. Tem de haver coleta de dados, discussão sobre nexos e conclusões à luz da Lógica. É assunto da Ciência. Mitos não existem para serem entendidos no jogo acadêmico das correlações causa-efeito.

    Deste modo, a Medicina nada tem a falar sobre a morte de nosso Michael. Porque as Ciências Médicas não detêm métodos para desvelar significações de fenômenos existentes nas tramas simbólicas da cultura e do psiquismo humanos. Igualmente, não precisamos das interpretações dos ‘psis’ sobre este cantor cinqüentão, aparentemente fixado em traumas edipianos. Agradecemos pela boa intenção de suas eruditas falas e deixem nosso Michael sossegado (há especialistas que se põem a falar, mais pelas próprias demandas narcísicas do que para partilhar vivências com o povo).

    Mitos são espantosas e deliciosas narrativas lendárias. Crenças que servem para lidarmos com nossas angústias existenciais – individuais ou coletivas. Mitos têm função estruturante nas vidas das pessoas e da humanidade. Para horror dos positivistas, não há entendimento sobre mitos na factualidade. Pelo contrário, é a livre imaginação que nos permite compreendê-los. Coisas para o estranho e profundo inconsciente freudiano e para a oculta e estrutural linguagem lévi-straussiana. Se os cientistas divulgarem as causas que tiraram a vida do corpo do Sr. Jackson, perderemos com isso. Então teremos ‘uma’ explicação. E perderemos o fascínio de termos ‘todas’ as explicações. Não poderemos mais projetar nossas muitas e inconfessáveis fantasias nele. Não o queremos descrito em ocorrências concatenadas. Basta que apenas médicos legistas e autoridades policiais saibam do sucedido sobre tal morte humana. Para o mundo, o Michael deve continuar sendo imaginado como inventado.

    Já pensaram como ficarão frustrados os amantes do suicídio se comprovarem que ele morreu de causa natural, de uma doença? E como ficarão desconcertados os usuários de substâncias se souberem que ele não terminou a vida com overdoses? E que fato paralisante para repórteres não haver indícios de que ele tenha bolinado genitais de meninos! Que sem-gracice para a mente não poder haver brincadeiras com nossas imagens corporais, se o rosto dele tivesse uma definição comum! Que vulgar se a cor de sua pele parecesse sempre a mesma! Gostava mesmo de sorvetes? Como conseguia dançar daquele modo num corpo humano como estudado por anatomistas e fisiologistas? Foi abusado sexualmente pelo pai ou não? Teve casamentos com mulheres mantendo-se assexuado, homossexualizado, com episódios heterossexualizados, pedofilizado na carne, pedofilizado só na mente? Teria sido um brocha ou tinha viris ereções? Fazia sexo mesmo ou só sublimava? Bilionário ou arruinado? E se o considerarem um coitado, sendo mito, por conseqüência coitados somos nós…

    Aconselho jamais procurarem confirmar essas suposições. Não ousem desvendar os mistérios que lhe atribuem. Não é posição emocional, do tipo de negação psicanalítica; nem posição política, do tipo alienação ideológica. É posição filosófica de salvação humana. É preciso que todas as coisas faladas sobre Michael nunca tenham acontecido, em nenhum lugar. Para que possam continuar acontecendo sempre, em todo lugar. O antigo mundo greco-romano era abundante em criações mitológicas. Em nossa sociedade urbano-industrial, das repetitivas tardes dominicais em shopping-centers, os mitos estão escassos. Portanto, abaixo as propostas de des-mitificações! Precisamos de mitos. Eles permitem expressarmos verdades da alma que não podem ser ditas de outra maneira. We are the world. Michael está vivo. Sirvam-se.

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