Monthly Archives: February 2011

Povo é nossa matéria-prima

A boa moral católica não aprecia muita transparência de propósitos, e quando uma linguagem serve a um interesse sem subterfúgios é feio. Assim, a propaganda é, das linguagens de comunicação, a menos “nobre”. Sua franqueza (“é pra vender mesmo, tá?”) não lhe permite comparar-se com outras de mais elevados (e sorrateiros) interesses – a linguagem artística e a jornalística, por exemplo. Mas vamos cometer o pecado da comparação.

Por linguagem, entenderemos aqui o elo entre uma ideia e um público receptor. A linguagem é aquilo que usamos para codificar, traduzir e transmitir. É o que dá sentido ou compreensão à mensagem.

Ao separar os três tipos de linguagens – artística, jornalística e publicitária –, façamos um esforço teórico para evitar as intersecções mágicas. Um artista pode expressar-se com uma linguagem publicitária (Nelson Leirner?), um publicitário, com uma artística (Paulo Leminski?), um jornalista, com uma artística (Rubem Braga?), ou vice-versa para não ser xingado. Mas, para qualificar com precisão as diferentes linguagens, tentaremos entender as motivações (não as inspirações)  autorais por trás de cada linguagem.

Será que dá?

Um artista tem compromisso com a sua expressão individual. É garimpando na profundeza da sua alma que ele desenvolve a sua ideia. Essa ideia tem e sempre terá um público incerto, não premeditado, que irá na obra reconhecer-se, emocionar-se, inspirar-se. A motivação do artista é, portanto, individual, autocentrada, egoísta. É por isso que tantos foram e são incompreendidos ou amaldiçoados.

O compromisso do jornalista, por sua vez, é com o relato do fato histórico. É apurando, pesquisando, consultando, ouvindo e relacionando fontes que ele se exprime. O público que ele alcança é definido pelo hábito e também com objetivos de instrumentalização da informação. O jornalista é um observador do real, um retratista da verdade, ou da verdade que ele consegue depreender de sua própria subjetividade. Sua motivação é, portanto, científica. É por isso que muitos são perseguidos ou censurados.

Finalmente, o compromisso do publicitário é precisamente com o público definido como alvo do produto ou marca para o qual ele trabalha. É sensibilizando-se com as aspirações e desejos, hábitos e comportamentos ou níveis de compreensão e preconceitos das pessoas que serão impactadas pela sua mensagem que ele esculpe sua ideia. Um publicitário é um farejador, um animal com enormes orelhas e olhos em todos os membros. Sua motivação é escancarar-se para o povo. É por isso que somos vistos por artistas e jornalistas como prostitutos.

Dar-se conta dessas fundamentais diferenças entre as linguagens separa muito o joio do trigo. E na propaganda, naquilo que fazemos e gostamos de fazer, a gente fica se perguntando por que diabos tem gente que gosta de inverter as motivações.

Tem gente que inventa e acha que a motivação individual – artística – é primordial na propaganda, e dá no que dá: propaganda de museu. Tem gente que inventa e acha que a motivação pode ser factual – jornalística – e que chata que é essa propaganda-conteúdo. Fora a confusão.

Por treino e por talento, o publicitário fala melhor com o povo do que o jornalista e o artista.

Se publicidade é cultura, se grafite é arte, se podemos usar (de novo) a Sarabanda de Handel ou o Adágio de Samuel Barber numa propaganda, se podemos dizer que xixi no banho vai salvar a Mata Atlântica, interessa menos, contanto que o povo (que não é burro nem surdo) ouça.

Esse artigo foi originalmente publicado no Meio & Mensagem de 28/02/2011

Jovens sexagenários e velhos adolescentes

Em Cordes-Sur-Ciel, no sudoeste da França, tem um edifício venerando com hera nas paredes rachadas, manchas obscuras derramando-se na fachada. O turista do midwest do Morumbi desembarca suas Goyard novas em folha, depois de uma razia excitante em Paris:  “Meu Deus, vou matar minha secretária que reservou essa espelunca!”.

O hotel “Le grand ecuyer” ocupa a antiga residência de caça do Duque de Toulouse, tem oito suítes decoradas com móveis de época e um restaurante estrelado. Nosso riquíssimo industrial da construção, sua esposa sem idade definida, os dois filhos adolescentes, o personal-trainer-motorista-bilíngue e dois amiguinhos-pochete são recebidos por um maître-d’hôtel de redingote que lhes apresenta seus aposentos.

Já de robe, untando-se o pescoço com novíssimo creme bronzeador, a beldade que transpôs as vicissitudes do tempo com o empenho de um arquiteto de Las Vegas observa para o marido: “Tão chique e tão caindo aos pedaços, como pode!?”.

É reverenciada a pirâmide de influências que dá conta de que adolescentes e coroas babam ovo para os jovens da faixa etária entre 18 e 24 anos. Muitas estratégias foram desenhadas e aplicadas para colocar no centro do desenvolvimento de produtos esse público-alvo, já que ele seria aspiracional para todos os demais. É daí que saem os argumentos para campanhas publicitárias: “Se tornarmo-nos desejáveis para essa garotada, é a coroa sarada e rica que não vai resistir. Quem não quer ter 20 anos?”.

Tem gente que não quer, por exemplo, os vintões. A tendência vem se invertendo drasticamente e já perdeu o viço a recauchutagem angular, ou seja, aquele disfarce de idade que só fica bem em ângulos e iluminação precisos. Quem nunca observou a ginástica necessária para capturar um ângulo enganador, quando não se tem mais 20 anos? São verdadeiros shows de poses e rigidez que se desfazem no segundo gin-tônica.

Hoje, a mulher e o homem de 40 anos são muito diferentes dos balzacos de 20 anos atrás. Têm as mesmas performances físicas (inclusive sexuais) de seus filhos, podem se dar ao luxo de não gostar de qualquer coisa, têm bufunfa e savoir-faire. Basta circular por aí para perceber que a pirâmide se inverteu: jovens se envelhecendo propositalmente. A prova mais irônica é quando a garota resolve, no frescor de seus 20 anos, fazer um retoquezinho aqui, um retoquezinho ali, e fica com a cara da mãe que acha que tem a cara da filha.

Desse pêndulo, entre jovens amadurecidos e velhos rejuvenescidos, quem sabe se chegue a um equilíbrio confortável. Entre o esmero e o desleixo, entre o plastificado e o ressecado, não passe uma brisa serena, revigorante e verdadeira. Quem sabe entre a jovem de sandália franciscana e a sexagenária de minissaia de couro rosa, a gente encontre um jeito de ser o que somos, sem querer ser o que seremos ou deixamos de ser.

– Pai, olha que garota linda!
– Ela não é linda, filho, ela tem 20 anos.

Artigo originalmente publicado no FFW

Cases, benchmarks e perucas

Todo o mundo já enfrentou seminários, palestras, reuniões ou simples conversas, ilustradas por cases apresentados como soluções exemplares para problemas idem.

Como é bem sabido, a douragem de pílula é prática comum: o acidente, o improviso, o chilique, os medos e os fracassos viram inspiração, transpiração, experiência, coragem e sucesso, num piscar de antônimos. A história belamente contada num vídeo cheio de efeitos especiais e trucagem funciona ainda melhor: ninguém pergunta nada e se deixa embalar pela alta voltagem.

Pode-se supor, no entanto, que alguns cases são realmente geniais, ultrapassaram a esfera dos amigos do Facebook, transpuseram a fronteira dos veículos-releases, tiveram audiências para além dos júris de festivais e deram resultados que não se contam em milhões de views no YouTube, mas em mudanças de paradigma de consumo, transformações de categorias e, por que não, abalos culturais.

Existe um determinado tipo de pessoa com o dom transcendental de citar cases alheios como respira, para qualquer situação. Esses arrotadores são da mesma espécie daqueles outros com o talento de encaixar pesquisas como vírgulas numa frase. Esses indivíduos  são também chamados de especialistas, sumidades, e por que não, eruditos.

Então, para todos esses gênios da raça e da memória, Consultores & Co, Workshops-rats, stoarm-blogs e Google-planners, para todos os Kicker-cases, devolvemos-lhes com a mesma moeda, de Schopenhauer.

“A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro [Kicker-case]. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelo alheio porque carecem de cabelos próprios. Da mesma maneira, a erudição [Kicker-casismo] consiste num adorno com uma grande quantidade de pensamentos alheios, que evidentemente, em comparação com os fios provenientes do fundo e do solo mais próprios, não assentam de modo tão natural, nem se aplicam a todos os casos ou se adaptam de modo tão apropriado a todos os objetivos, nem se enraízam com firmeza, tampouco são substitutivos de imediato, depois de utilizados, por outros pensamentos provenientes da mesma fonte.

Os eruditos [Kicker-cases] são aqueles que leram as coisas nos livros. Os pensadores são aqueles que as leram diretamente no livro do mundo.”

A AES Eletropaulo é uma mãe

Ficar sem luz é charmoso, tomar banho frio é bom pra pele, não falar no telefone evita aborrecimentos, não ligar a televisão poupa a sanidade mental, não entrar na Internet antecipa as férias, doar sangue para pernilongo é caridoso e ligar para a sua fornecedora de eletricidade (no caso, a AES Eletropaulo) é uma lição de paciência na espera, de compaixão quando você é atendido e auto-controle quando lhe respondem que não há previsão de retorno. A AES é uma mãe pra nós.

A AES Eletropaulo é uma empresa prestativa, lhe ensina muito enquanto você se delicia com sua seleção musical new age, você fica sabendo por exemplo que talvez haja problemas na sua fiação, que é importante verificar se também falta luz nos vizinhos, e que agora, ela também resolveu facilitar a sua vida porque você pode mandar um SMS dando-lhe as boas novas, gratuitamente.

A AES Eletropaulo é muito atenciosa também quando lhe acalma, contando histórias tristes, de árvores caídas, de equipes espalhadas pela madrugada úmida, de fios partidos e postes abalroados.

A gente só se lembra da eletricidade quando ela falta.

Com a AES Eletropaulo é diferente: todo mês, você se lembra dela quando paga a conta. Já quando falta luz: esquece!

A cultura da abundância

Armários de família costumavam ser herdados. Eram parte de um patrimônio físico e emocional inestimável e não havia uma única casa de classe média da Europa que não possuísse um desses grandes móveis de carvalho, trabalhados nas portas, que ao abrir-se exalava outros tempos, outros amores, outros sofrimentos e alegrias. A  moda era uma preocupação supérflua de minorias. A cultura da reposição era o passatempo dos nobres enfadados com o ócio. A abundância também virou aspiração da burguesia, que rivalizava assim com os carcomidos de sangue azul e o mesmo com o trabalhador face ao burguês abonado: o sonho de passear imensos carrinhos na Ikea e aumentar os limites no cartão de crédito.

No século XXI, o valor supremo das sociedades dominantes é quantitativo. Prosperidade é fator da velocidade do sucateamento. E o armário de família foi para o mercado das pulgas ou para o guarda-móvel, substituído pelo closet abarrotado.

O maior problema dos países em crise é o excesso de abundância e a falta de pobres em quantidade suficiente para consumir o descarte dos ricos.

A nossa “vantagem”, da China, da Índia, é ainda termos muitos pobres. Mas nosso azar é que só sabemos curar excesso de abundância com mais abundância.

Entrar em outlet de Miami abarrotado de brasileiros é a visão dantesca de uma catástrofe anunciada: o culto da abundância versão mortos de fome.

Atrofia de 140 caracteres

Imaginemos o ano de 2300.

A Terra tem algumas dezenas de bilhões de homens; florestas e praias estão em museus e falamos chinês fluentemente.

As pessoas são mais altas, mais velhas e mais ociosas do que nos séculos anteriores. O trabalho é um luxo, um hobby ou um vício.

A produção de todos os bens é automatizada, autossustentável e sintetizada, já que o planeta está oco como um queijo suíço.

Os governos não se preocupam mais com guerras, nem com exploração e beneficiamento de riquezas, mas com ocupação do tempo. Imensos movimentos de terapia ocupacional são subvencionados, mas a produção manual, artesanal ou artística gera insuperáveis acúmulos de sucata. Por isso, normas internacionais exigem licenças raras para a produção física. Todas as energias concentram-se nas manifestações virtuais perecíveis.

A humanidade inteira entrega-se à curtição. Estéril.

Não há mais luta de classe, nem de raça, nem de sexo nem de religião – que não há mais. Nem divergências políticas, nem polêmicas, nem de opinião. Não há fatos, nem história.

Nada de drogas, álcool, esportes, sexo. Angrybird virou mania global.

De volta aos anos 2000.

Quando o conhecimento vira consumo, a luta vira esporte e o cinismo, a religião, a preguiça é epidemia.

A curiosidade superficial, fruto dos estímulos de 140 caracteres e das simplificações indexadas, atrofia a existência.

Estudar propaganda pra quê?

“Prezado senhor. Desde pequeno, gosto de propaganda. Tenho muito interesse em ingressar nessa carreira. O senhor poderia me indicar as melhores escolas de comunicação?”

Todo profissional já enfrentou esse tipo de pergunta. Cabeluda. E a primeira reação é relativizar a importância de um curso superior especializado. Gostamos de ser não convencionais e o ditado “quem sabe faz; quem não sabe ensina” pesa.

A propaganda deve ser uma das especializações mais datadas. Assim, de pouco adianta conhecer a história da propaganda e menos ainda as pseudoteorias dos best-sellers de marketing. Suas hipóteses e técnicas são quase sempre chumbadas em circunstâncias peculiares e únicas, portanto, incrivelmente perecíveis. A menos que o aluno se interesse por uma antropologia da propaganda, na real, é uma prática informal.

As influências da propaganda flutuam atormentadamente na correnteza dos movimentos sociais, da cultura, da língua, da tecnologia, da economia, dos hábitos, dos valores individuais. Qualquer tentativa de sistematização teórica nasce vencida. A técnica publicitária não se aprende, experimenta-se.

Portanto qual seria o currículo útil para um aspirante a publicitário? O que se deve ensinar?

Se a propaganda é tão permeável a todas as atividades humanas, se ela carece de ética própria, fazer boa propaganda é fator de alguns indispensáveis gostos – curiosidade, observação, risco – e desejáveis habilidades – expressão, análise, autocrítica.

Assim, um bom currículo deveria atender ao desenvolvimento desses gostos e habilidades.

Por exemplo, para atiçar a curiosidade: cultura geral, clássica e étnica; para a observação: excursões para museus, festivais, favelas, cadeias, ruas; para o risco: paraquedismo, roleta-russa, circo. Para trabalhar a expressão: literatura, música, dança e oratória; para a análise: filosofia e xadrez; para a autocrítica: psicanálise.

Metade do currículo deveria ser dedicado a teorias de outras cadeiras (história, literatura, geografia, filosofia, antropologia, estatística) e a outra metade à prática em oficinas, ateliês, estágios, serviços comunitários.

Nas horas extras, no extracurricular, se quiser e tiver tempo e saco, Kotler, Porter e que tais.

Triste Monte

Belo Monte é o florão do Programa de Aceleração do Crescimento. A usina será construída no Estado do Pará, numa região do rio Xingu chamada Volta Grande, a um custo orçado em 30 bilhões (dólares ou reais, faz alguma diferença?) quase totalmente financiados pelo BNDES, de mãe pra filho empreiteiro.

Apesar de controvérsias técnicas que dão conta de uma obra cujo potencial é hiperdimensionado em função da sazonalidade do rio, apesar de controvérsias sociais que dão conta de condicionantes impostas pelo IBAMA e pela FUNAI que não foram atendidas na pré-licença de construção do canteiro, apesar de controvérsias ambientais que dão conta do impacto na vazão do rio que irá comprometer espécies e populações, apesar de controvérsias econômicas que dão conta da matriz energética brasileira que privilegiará, nesse caso, indústrias consumidoras de muita energia (alumínio por exemplo) e que o mundo socioambientalmente consciente refuga para a periferia do mundo (nós), apesar de uma lista infindável de mais apesares, no apagar das luzes entre governos, na carona obscura de desastres midiáticos de grandes proporções, depois de demissões sucessivas de técnicos que se opunham à construção, Belo Monte vai ser construída.

Depois de 30 anos, a ganância, a miopia, o imediatismo e o poder sem controle vencem. O Brasil precisava de dinheiro internacional para construir Belo Monte há 30 anos. Mas o dinheiro foi negado, à época, por excesso de apesares pairando sobre a obra. Agora somos ricos, não precisamos mais da grana de ninguém, a gente tem soberania e aqui, no Brasil, é assim: manda quem pode; quem não pode se sacode.

Mas o que é Belo Monte? Mais uma hidrelétrica, dentro do programa da construção de mais 60 que irão represar todos os rios da Amazônia no futuro. Depois, só vai faltar azulejar a floresta e ligar o ar-condicionado.

Mas se não acreditarmos no aquecimento global, se não acreditarmos nos impactos negativos da emissão de gás metano na atmosfera produzido pelo alagamento de florestas, se não acreditarmos que 60% do território brasileiro, a Amazônia, é a maior reserva de água potável do mundo e que essa reserva é ecologicamente dependente da floresta, se não acreditarmos que a política brasileira é financiada pelas empreiteiras, se acreditarmos que índio é quase bicho e que a gente que mora longe, lá na Amazônia, é menos gente que a gente, a gente deveria pelo menos se perguntar por que diabos o Egito interessa muito mais a gente do que a nossa terra? Por que a bomba relógio no mundo árabe nos toca mais do que a que enterraram sob o nosso nariz?

O Egito Antigo foi uma das civilizações mais prósperas e desenvolvidas do mundo antigo. Construíram obras faraônicas para perpetuar seu brilho por milenares. O que aconteceu com o fausto de outrora?

As pirâmides estão hoje situadas numa abjeta periferia do Cairo. Bombas de um passado remoto. Quem dera fosse por isso que a queda de Mubarak tanto nos fascina. Quem dera o Egito de hoje fosse a visão fantasmagórica do nosso futuro com esse Triste Monte que iremos construir.

Artigo originalmente publicado na edição de 13/02/2011 de O Globo

Os índios somos nós

Ontem, Raoni, líderes de várias nações indígenas e ambientalistas foram entregar, em Brasília, um abaixo- assinado contra a hidrelétrica de Belo Monte. Raoni foi recebido por algum preposto de subnada e a manchete de um jornal em seu portal dizia “Índio não quer usina”.

Foram 500 mil assinaturas, arregimentadas na internet, em redes sociais. O resultado, impressionante considerando a rapidez da mobilização, mal sensibilizou o ministro das Minas e Energias que respondeu que a construção estava prestes a começar.

O fato ilustra o descompasso de uma instituição que permanece outorgando-se uma missão de representatividade popular, há muito perdida: o Estado.

Quando meio milhão de pessoas se manifestam deliberadamente, o ministro, de cínica pantomima, devolve com a chantagem típica do populismo de gabinete: “é Belo Monte ou usinas termoelétricas poluidoras”.

Ao nobre líder de uma luta que dura 30 anos, só resta rasgar a petição. À população que assinou conscientemente o pedido, só resta rasgar seus títulos de cidadão.

Pagamos impostos eletronicamente, mas ainda estamos muito longe de qualquer suspeita de democracia participativa.

Em um mundo cada vez mais conectado, em que populações inteiras se reúnem em redes autossuficientes e que elegem seus líderes e ideologias, o Estado, até em autoproclamadas democracias como a nossa, permanece míope ou fantoche de interesses imediatistas.

Ministro Lobão, Presidenta Dilma, o meio-apagão-meia-boca de São Paulo não é mais importante que o pedido dessas pessoas que ontem, pacificamente, portavam a voz de milhões.

A pressa é a antítese da alma

– Claudia, o que é isso colado no vidro do escritório, atrás de você? Tira isso!
– Mas, Steve, isso é um texto muito lindo e verdadeiro.
– O que é?
– É a palavra do Senhor. Está na Bíblia!
– Bíblia?
– Sim, na Bíblia, você deveria ler.
– Está bem, Claudia. Me faz uma apresentação disso em bullet-point, por favor, e tira isso do vidro.

Que gringo insensível, desrespeitoso, sem alma.

Mas no mundo de hoje, não há mais espaço para contemplação, meditação, poesia e sutilezas. Quanto mais rápidos nos tornamos, menos adjetivos, menos metáforas sofisticadas. Proust já teria morrido de fome e Tolstoi e Balzac, e Saramago também.

Estamos nos tornando mais nervosos, sem paciência. Temos pressa de ir ao âmago sem atalhos sensoriais. Fome de comer sem mastigar.

Todo piano tem uma tábua de ressonância. É a alma do instrumento, por sobre a qual deitam-se as cordas. Um Steinway usa pinho de Riga, cultivado em Riga mesmo, a uma altitude precisa de 900 metros do nível do mar, que só pode ser abatido quando alcança a idade precisa de 22 anos, quando então passa por precisos 5 anos de descanso, até poder ser usado. Um Yamaha usa a mesma espécie de pinho. Mas seu plantio, abate e descanso respondem às necessidades do mercado. Mais encomenda, menos tempo. Um Steinway é um Steinway, e um Yamaha, bem, um Yamaha, que usa o mesmo material que um Steinway, é, e sempre será, apenas um Yamaha.

Como o primeiro movimento do concerto número 4 de Beethoven tem no mínimo 19 minutos e no máximo 20, sempre, qualquer que seja o intérprete e a demanda, nenhum solista sério quer tocar num Yamaha, nunca.

O que se perde com a pressa é precisamente precisão. E com falta de precisão, o que se perde? Alma.

A imprensa de soluço

– Bom dia, seu Fernand.
– Bom dia, Dona Maria.
– Acabou o pão, a máquina de lavar quebrou e a sua cachorra comeu aquela planta que sua mãe lhe deu.
– Sei.
– E o Egito, hein? Que confusão, não?
– Sei.

Difícil imaginar o que fazia aquele punhado de gente manifestando-se no centro de São Paulo pela queda do Mubarak. Talvez tropicalizados descendentes dos faraós ou a associação de egiptólogos de São Paulo ou, quem sabe, entusiastas cool-hunters provando que a cidade está no epicentro hype do mundo.

Mas, se pensarmos bem, não é pra menos. Cinco em cada cinco manchetes dos jornais dos últimos 10 dias falam do Egito como se fosse da Freguesia do Ó. Conhecemos mais as ruas do Cairo do que os becos de São Mateus. Sabemos mais da política do Oriente Médio do que das negociações de cargos do governo. Conhecemos melhor o canal de Suez do que a Volta Grande do rio Xingu, onde vão construir uma bomba-relógio chamada Belo Monte.

A imprensa, se não é sensacionalista, se não é rasteira, se não é míope, se não é vendida, é, pelo menos, incrivelmente enfadonha e repetitiva.

Da próxima vez em que ligar o noticiário, pergunte-se se ainda existe alguma coisa que você queira muito saber sobre o Egito que ainda não tenha sido dita e que possa ser dita.

E, da próxima vez em que você responder que já sabe tudo e que o Egito é lindo mas é lá nas arábias, procure o que você não sabe, por exemplo, sobre o Brasil e o que está acontecendo agora, na sua venta.

A imprensa tradicional (vide, em veículos passivos), na busca pela audiência a qualquer custo, sofre de soluço perpétuo. Soluço excitante para uma audiência cada vez mais senil.

Censurar ou não censurar conteúdos colaborativos

Na propaganda eleitoral gratuita, um ex-presidente enaltece a “transparência” suscitada pela “Internet e Facebook” como uma nova exigência pública que transforma os comportamentos políticos. Mas é tão ingênuo acreditar que a Internet é causa quanto crer no poder transformador de uma ferramenta.

A origem das invenções humanas se perde na noite dos tempos e sua gênese raramente está associada à necessidade. Os Mayas inventaram a roda, usada em brinquedos de crianças, mas nunca a utilizaram como ferramenta porque não viam nela nenhuma aplicação técnica. O princípio do pistão a vapor também remonta a muito antes da era industrial, mas quem é que poderia achar útil substituir milhares de escravos baratos e com capacidade de autorreprodução por máquinas? A Internet não causa nada, nem o Facebook.

É evidente que após um tempo toda ferramenta se autoalimenta de necessidades, transformando-se. Dessa forma nascem afirmações como a do ex-presidente, falsas na explicação, mas possíveis na prática. Na Internet, mentira tem perna curta (talvez não por causa, mas por consequência).

Mas essa afirmação também é ingênua.

Os governos totalitários, assustados com a capacidade de propagação de ideias subversivas, tiveram como comportamento inicial a censura ou o controle da Internet. Mas já há algum tempo que esses próprios governos – os menos imbecis – perceberam que a Internet pode ser utilizada a favor de suas ideologias e que isso é mais eficiente e barato do que proibir. Assim, fazem exatamente o mesmo que seus opositores, a saber, difundem-se publicitariamente.

A mesma regra, simples e lógica, deveria ser entendida amplamente também pelas marcas.

Com a Internet, a censura tem pernas muito mais curtas do que a mentira.

Demo de produto em comercial é de se rir

Identidade é uma escolha ou uma herança? Há quem acredite em herança, quase genética, atávica. Mas a hipótese é conservadora e contradiz a principal força motriz do desenvolvimento humano: a miscigenação, a promiscuidade cultural e a barafunda de influências que nos impulsionam adiante. A identidade herdada é uma prisão que arrasta muita gente para o divã.

A identidade escolhida, no entanto, não significa que não possamos relacionar as afinidades culturais de um povo. Desde Caminha, tentamos apropriar para o brasileiro um caráter, um gosto mínimo denominador comum. Em tempos de entusiasmo econômico, essa busca se acentua. Afinal, o que nos une, para além da geografia, da língua e do passaporte? Para entusiastas, é a criatividade; para derrotistas, a passividade.

Quando perguntados sobre qual seria a característica mais apreciada de uma propaganda, uma pesquisa apontou, de longe, que era o humor. Lá na rabeira, aparecem os clichês típicos da propaganda de baixa qualidade: uso de celebridades, jingles e músicas famosas, etc.

Apesar do Luciano Huck virar capa de revista (da Veja, claro) pelo seu bom-mocismo sem graça, apesar da promiscuidade de sua imagem, é triste aceitar que ele personalize nosso mínimo denominador aspiracional.

Prefiro achar que o Gerônimo Santana (“viado cidadão”) é melhor do que o Luan Santana (“meteoro da paixão”). Melhor Chacrinha do que Huck. Muito mais gozado, efêmero, debochado.

Talvez sejamos mais brasileiros quando rimos de nós mesmos, quando não nos levamos a sério.

Existe alguma coisa mais enfadonha do que uma demo de produto, em um comercial, que tenha a pretensão de explicar tecnicamente as propriedades benéficas de um produto? Até quando continuaremos acreditando que o brasileiro é como o alemão e gosta de provas para consumir?

O convencimento pela seriedade é um caminho anacrônico em um país que se debulha no carnaval, faz samba com a miséria, ri da desgraça e gargalha até com o preconceito. A demo de produto clássica é gringa, chata e burra, principalmente em uma linguagem – a propaganda – que há muito virou assunto de bar.

Propaganda também pensa

Podemos sistematizar as linguagens de comunicação em quatro grandes tipos.

O artista se exprime e o produto de sua manifestação se materializa numa linguagem (visual, literária, musical e, por que não, novelística). A arte encontra, ao final da linha, um público, uma audiência, que se engaja, dialoga, se emociona com aquele produto. A gênese da produção artística está centrada na expressão individual e portanto não tem compromisso com sua audiência.

A linguagem documental ou jornalística, por outro lado, difere da primeira pelo seu compromisso com a verdade (e não com a expressão individual). Os fatos observados são o único compromisso desse tipo de linguagem, embora ela também tenha um público final, como a artística.

A linguagem científica, social, antropológica, etc., por sua vez, embora também tenha um público (portanto é comunicação), tem por compromisso a própria gênese dos fenômenos observados e estudados. Não há compromisso com a audiência nem com a expressão individual, tampouco com a verdade dos fatos, porque o objetivo da ciência é precisamente entender a observação, explicá-la.

A quarta linguagem de comunicação é a publicitária. Das quatro linguagens, a publicitária difere precisamente das anteriores porque ela se justifica exatamente na audiência. A linguagem publicitária não se interessa nem pela expressão individual, nem pela observação, nem pela gênese dos fenômenos. Ela se origina na audiência e, a partir de sua análise, elabora seu produto final.

Essas classificações são teóricas. Assim, uma “arte” será considerada “publicitária” sempre que ela se preocupar mais com a audiência do que com a expressão individual, por exemplo. Ou um “documento” será considerado “artístico” se ele tiver interferência da expressão individual acima da observação, e assim por diante.

Esse hipotética classificação é eficiente para analisar tipos de mensagens, sua função e eficiência. Sempre que se dirigir a uma massa grande de pessoas com o objetivo de convencê-la, a linguagem publicitária parece ser mais adequada justamente porque, por treino, técnica ou talento, o publicitário usa, como matéria-prima, sua capacidade de compreensão (racional e emocional) da audiência.

As estratégias de RP ou de “geração de mídia espontânea” que se apropriam de uma linguagem jornalística para vender um produto/marca são menos eficientes, por definição. Da mesma forma, as estratégias de “product placement” ou “merchandising” (e, por que não, “brand content”) que se apropriam de uma linguagem artística para vender um produto/marca, idem.

Vira e mexe aparece um guru, um consultor ou um gaiato, redefinindo a comunicação, não sem antes, delicadamente, vender seu peixe.

Vira e mexe a gente se sente seduzido pelo discurso da revolução, não sem antes, descaradamente, vislumbrar maiores lucros.

Vira e mexe, também, a gente para tudo e pensa. E pensar é sempre melhor do que remediar.

Os clubes das inutilidades coletivas

Não, eu não quero comprar a nova safra de nenhum vinho. Não, eu não quero desconto na academia. Não eu não quero branquear meus dentes, nem uma pizza de graça na compra de uma esfiha.

Não, não e não, eu não quero comprar nada que eu não queira. Já sou bem crescidinho pra saber que, se eu quiser um desconto de 50% em alguma coisa, é só juntar uma galera com a mesma intenção.

Alô, gênios, essa revolução aconteceu séculos atrás quando descobrimos que, quanto maior a demanda, maior a economia de escala e, portanto, menor o preço.

É justamente por isso que a gente faz propaganda para um monte de gente, partindo da premissa de que as pessoas têm desejos inconscientes de coisas que eles nunca imaginaram querer. É o que chamamos de geração de demanda. Gerando demanda, o preço cai, parabéns aos brilhantes garotos que inventaram os famosos clubes de compra online.

Parabéns também aos milhões de dementes que se conectam com esses clubes porque eles certamente irão fazer incríveis negócios, mesmo que jamais os realizem. Toda mulher de malandro sabe disso: se não encontra afago positivo, leva porrada. E gosta. Afinal de contas, quem resiste a uma liquidaçãozinha? Mesmo que não seja o seu tamanho nem sua cor preferida, com esse desconto também, pudera!

Toda essa genialidade reunida balançou o rabo na cauda longa e a cauda longa deu a pata. A mídia também, sedenta de um assuntozinho qualquer para preencher a editoria de Nova Economia, já vaticinou a surpreendente, estonteante tendência. E lá vai a velha economia, do alto de seu empoeirado poleiro, solicitar planos, estratégias, para abocanhar também este novo mercado.

Enquanto a economia da miséria humana consome emagrecimentos milagrosos e outras mezinhas, tem gente enchendo a pança, vendendo a privacidade alheia.