O preconceito, o banal e o criativo

O cérebro humano funciona como um elaborado engenho classificatório. O processamento cerebral rotula naturalmente nossas experiências, observações e sensações.

Uma faca é diferente de uma tesoura. Quando se apresenta um novo objeto pontiguado com lâmina lateral, nosso cérebro vai muito rapidamente percorrer um inventário de possiveis classificações para aquele objeto, comparando o novo com os antes memorizados. Se houverem muitas semelhanças, o objeto encontra seus pares e ganha um nome: faca. Esse é o papel da linguagem.

Numa outra ocasião, deparamo-nos com um objeto novo. Ele é também pontiagudo e tem lâmina lateral, mas apresenta um anel duplo e duas laminas paralelas. Se nunca tivermos visto uma tesoura antes, três possibilidades se apresentam: 1. O novo objeto é desprezado e vai para uma espécie de limbo. 2. O novo objeto vira uma faca. 3. O novo objeto inaugura a nova categoria das tesouras.

Sinteticamente, essa analogia nos permite encontrar três diferentes cérebros. O primeiro é o mais primitivo porque refratário às novidades. O segundo é mais evoluído porque se utiliza de um repertório aproximado para encarar a novidade. O terceiro é o cérebro criativo porque tem a capacidade de inventar novas categorias para o que é novo.

É provável que a imensa maioria dos seres humanos pertençam às duas primeiras categorias.

Na primeira, encontramos os preconceituosos, por exemplo: se é diferente daquilo que já conheço, então não me interessa. E nesse caso, preconceito é sinônimo de ignorância. A tesoura é estranha, portanto não tem razão de existir ou de conviver comigo. Um negro é estranho, portanto não pode ser meu amigo.

Na segunda categoria encontramos um tipo muito banal que aceita o novo desde que possa ser facilmente classificado: se é parecido com o que já conheço, então é a mesma coisa. Este é o cérebro que manipula a linguagem classificatória para entender as novidades. Assim, uma tesoura para ele é uma espécie de faca, portanto é uma faca. Um travesti é uma espécie de mulher, portanto é uma mulher. São cérebros que referenciam antes de apreciarem: um Braque é uma espécie de Picasso. Esse cérebro, generalista, pragmático e superficial tem muitas variantes, é claro, dependendo do seu repertório mas é tão pouco criativo quanto o primeiro.

Finalmente, o terceiro tipo é o cérebro aberto, elástico, generoso. Ele é evidentemente raríssimo. É o cérebro menos compreendido também pelos dois outros cérebros justamente porque é aquele que cria as novas tesouras. Mas esse é o cérebro que move o mundo adiante, uma vez que o primeiro puxa para trás e o segundo para os lados. É o cérebro dos criadores e dos apreciadores.

Mas nem tudo é tão simples e toda classificação é ingênua, inclusive esta, mas ela ajuda a fazer exames de consciência: toda vez que nos defrontamos com algo que não conhecemos, é importante fazer uma auto-análise do processo cerebral. Estamos rejeitando? Estamos só comparando? Estamos apreciando?

É extremamente comum ainda protegermos nossos pendores primitivos com afirmações do tipo “é uma questão de gosto” ou “esse é o meu jeito” ou “sou sincero comigo mesmo”.

Gosto muda. Gosto evolui. Jeito também. Ainda bem. Não tem graça viver num mundo sem criatividade, mas como ele sofre com a sinceridade daqueles que se assumem primitivos!

4 thoughts on “O preconceito, o banal e o criativo

  1. Excelente! Como sempre, faço reparos (nem sempre contrários, às vezes complementares): gosto existe, sim, nem sempre muda e nem sempre é proteção a pendores primitivos. É diferença perceptiva, e pronto. Não pode é impedir a experimentação. Jeito também muda, mas é difícil pra caramba (e aqui reitero que você precisa ler Gaiarsa, aposto que vai gostar muito mais do que pensa). E, por último: provavelmente, todos fomos, ou somos, o três “tipos de cérebro”. Às vezes tudo ao mesmo tempo agora, dependendo do tema.

    Faço minhas as palavras de desabafo contra os primitivos convictos.

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