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Conto não coração

Ele era tão pobrezinho, tão sem nada na vida. Mané morava de favor, debaixo de uma seringueira, dividindo o ninho de raízes com Ronco, o cão pardo.

Mané chegou na cidade ainda pequeno, mas não chora mais das feridas da lembrança e nem das noites em que sonhava. Era um dia após o outro.

De manhã, acordava, catava uma manga no pátio do convento, quando tinha, e, com Ronco aninhando a fome nos seu colo, ele se recostava no muro da igreja até de noite. Quando não estava mirando as nuvens, conversava com o cão. Às vezes, sorria também para a moça que varria as escadarias ou comentava o fluxo de fiéis com outro coitado de passagem. Tinha dias que deixavam ele se debruçar na janela, perto do altar. Ele gostava de ouvir o padre e o incenso lhe dava tontura gostosa. Mas não era sempre. Outras vezes, quando tinha muita esmola, sobrava um troco para ele. Dava um pão e um osso. Coisa boa.

Tinha também as festas da igreja e, então, Mané cuidava de limpar a praça. Teve uma vez que ele tomou quentão e todo mundo brincou, quando ele cantou. Nem ele sabe de onde tirou a letra que dizia mais ou menos assim:

“Um, dois, três,
Era uma vez,
Um, dois, três.
Saí de lá,
Eu vim pra cá.
Tem coisas que não conto,
Mas não sou tonto,
Tem segredo que não conto,
Conto não meu coração”

Mané cantou e dançou muito, sem parar. Até Ronco desconfiou. As pessoas todas também diziam: “Que diabo Mané tinha que não contava?”.

A vida de Mané e de Ronco nunca mais foi a mesma depois disso. Mané não sossegava dos olhares do povo matutando.

Era um tolo, dormia na rua e não era nada, mas, depois da quermesse, Mané não era mais Mané. Ganhou casa, comida e até chinelo de ir rezar.

O que Mané tinha, ele não contava. Mas o povo, o povo sem coração, assuntava do segredo de Mané e, por isso, quanta consideração!

Bromélia

O entregador suava muito. Afinal de contas, eram seis andares sem elevador, carregando uma enorme bromélia. “Cuidado moço, não vai me quebrar as folhas, pelo amor de Deus.”

Mas finalmente, lá estava ela, tronando na sala, lasciva e indiferente. Os membros escancarados lustravam a luz opaca do apartamento. “Acho que vai dar vida”, disse a amiga da floricultura, “vai combater a morbidez da cidade”. A morbidez da cidade?! Será que ela estava querendo dizer que a minha casa era mórbida? Que minha vida era mórbida? Que faltava vida na minha vida? Nem olhei o preço daquela oferecida e comprei a gigantesca bromélia, que agora atravancava minha sala. Mas fiquei contente, apesar do susto que levei na primeira noite, a caminho da cozinha. Tropeçando de sono, a instalação tenebrosa expandia seus tentáculos na penumbra, como um polvo do inferno.

Aos poucos, no entanto, acostumei-me com a intromissão e concordei tácitamente com a presença dominante da bromélia. Adaptei rapidamente meus itinerários para não desfolhá-la, para não tocá-la e, de preferência, para não cruzar seus mil olhares famintos.

Com o passar do tempo, vi-me conversando baixinho com a messalina. Eu pedia-lhe bênção para qualquer mudança no ambiente e até solicitava-lhe seu acordo para eventuais visitas. Finalmente, alguns meses depois, estávamos totalmente familiarizados um com o outro e eu assumia, com muita naturalidade, sua ascendência psicológica. Confesso que eu até gostava da nossa relação, já que ela me dava o conforto da dependência.

Aranhas e catitas

–    Catitas me roem!

Foi assim que a avó, sentada na sua poltrona enorme, gritou quando me viu. Tomei um susto. Na entrada do caramanchão, com Benê de um lado e Malê do outro, pensei que aquilo não era maneira de me tratar na frente dos meus amigos. Fiz cara feia, para segurar aquela maldita vontade de chorar. Olhei para o chão, envergonhado não sei de quê. Mas foi bom, porque eu tive vontade de rir e Benê também. O pé da minha avó era uma coisa incrível. Todo engelhado, corcunda e com os dedos se atropelando. Sempre pensei que, quando ela morresse, eu ia lá, à noite, para ver onde se escondia o mindinho.

Quando ela fez sinal para eu me aproximar, rodeei a cadeira de balanço vazia do meu avô, que tinha morrido uma vez. Era proibido tocar nela e sentar também, que ele vinha de noite puxar o pé. Fiz sinal pros meninos saírem de fininho, mas claro que Malê perguntou por quê. Olhei pra ele e fiz cara de bravo. Daí, eles foram embora. O caramachão da minha avó era muito grande. Tinha tanta planta e tanto cheiro que, sempre que ela estava dormindo, eu mais Judite, a gente ia lá caçar as aranhas. A Judite me falou que aquelas aranhas fabricavam perfumes mágicos. Eu acho que minha avó é uma aranha bruxa inclusive. Ela sempre tinha aquele perfume que me deixava tonto. Por isso.

Quando cheguei pertinho, mas não tão perto assim para ela não me abraçar, pedi bênção. Ela era meio surda também e começou a falar. Eu nunca entendia direito o que ela queria, porque acho que ela estava virando aranha mesmo. Mas ela fez uma cara muito feia e eu dei um pulo para trás. Daí, ela começou a babar um monte. E falava e babava. E quanto mais ela babava, mais ela falava. Fiquei até com pena da minha avó. Porque ela estava muito nervosa e velha também. Muito mesmo.

–    Vó, o que foi, vó?

Daí que eu entendi que ela estava em processo de mutação mesmo. Como as borboletas, só que, no caso dela, era de aranha. A baba não era baba. Depois a Judite me explicou  que eram teias de aranha em estado líquido. Pensei em chamar alguém, mas a casa estava vazia, e o Benê e também o Malê tinham ido embora. Nem a Judite estava.

Foi daí que eu fiz a coisa mais corajosa de todas. Eu tinha uma certa experiência com as aranhas e, sempre que uma tentava escapar, porque elas eram rápidas as aranhas do caramanchão da minha avó, eu cortava os fios da teia logo lá em cima, perto do ninho e elas sempre caíam na garrafa. Mas é claro que nesse caso era diferente, porque era a aranha bruxa em processo de mutação que ainda por cima era minha avó.

Então, eu cheguei perto e bem forte puxei as mãos dela. Ela não andava muito não minha avó, quer dizer, quando ela não era aranha ela só se arrastava, com a Judite puxando ela assim com as mãos. Ela continuava babando, mas ela parou de falar e de fazer caretas. Arrastei a velha pra cadeira do vovô. Ele não ia se importar, porque era a mulher dele.

Foi daí que ela se acalmou, parou de babar e nem virou aranha mais. E até morrer, uma vez, muito tempo depois, ela sempre sentou ali.

A poltrona dela, velha, velha também, a Judite jogou fora,  porque estava toda roída por uma catita que morava ali e que um dia roeu a bunda da minha avó.

Fecha não fecha

Noite, quase madrugada e o café esvaziou seus habituados bêbados. No salão, mesas descadeiradas, balcão encardido, garçons mal-humorados. Poucos focos de sonolenta vigília. Aqui, um policial aquece a espinha; ali, um estudante devora seu sanduíche murcho; adiante, um casal sorve uma sopa desoladora. Os últimos clientes ancoraram suas nádegas no café triste.

Chove e gela lá fora. Poucos fregueses ainda arriscam, sem sucesso, da porta, um último gole, um último alento, palpite, conforto. A cidade desalma os desgarrados.

São onze e vinte agora, e um gato se espreguiça sob o toldo encharcado: é quase hora da caça para ele. O patrão desliga o rádio e precipita a faxina que se arrasta.

Se arrasta. Se arrasta. Se arrasta. Fecha não fecha, fecha não fecha. Não fecha ainda, quase na hora, quase, quase. Ela está chegando. Atrasada. Deve ser a chuva, o frio. Onde estará? Vai demorar? Será seu vulto pardo na esquina?

Toca a campaninha da porta. Os sinos despertam o olhar curioso do estudante, a malícia do policial, a esperança do velho casal. Despertam também o sorriso maternal do patrão.

Encasacada da cabeça aos pés, um longo cachecol a disfarçar-lhe o rosto desertificado, a dama escorrega como um espectro. E mastiga um boa-noite rouco. Em segundos, a velha desaparece pela escada em caracol que desce ao porão. Alguns coxixos reverberam no café. Todos se concertam e interrogam quem é. Mas o patrão emudece sorridente, como todos os dias, como há quarenta anos quando ela entrou pela primeira vez no café. Chovia e também fazia frio.

O café curioso murmura.

É quase meia-noite: um tilintar de cristais, um farfalhar de seda; um vapor silvestre escapa do banheiro, do porão. No salão, o estudante mastiga, o policial degusta, o casal saboreia, lenta, silenciosa, atentamente.

O café teso suspende o fôlego.

Meia-noite agora: um chapéu de feltro, uma serpente de pluma rosa e um longo colar belle-époque serpenteia escada acima.

O café extasiado aplaude.

O patrão se precipita e, com uma profunda reverência, escancara a porta do café. E Dame Loulou, numa nuvem de cânfora, escapole pela noite. Sublime. Absoluta. Eterna.

Castelo de areia

Ele começou fazendo pequenos montes com as mãos. Era mais um reflexo do que um projeto. Ele puxava a areia e a deixava cair ao lado, displicente mas ordenadamente. É claro que uma hora, os braços não alcançavam mais nada para cavocar. Então, ele agitou as pernas, fincando o calcanhar no chão e espalhando areia. Ao mesmo tempo, ele amolegou as suas primeiras construções. Cláudio nem percebeu que seu corpo inteiro estava trabalhando, pernas, pés, braços e mãos. Mas, quando ele retornou do mar onde tinha ido se refrescar, o lugar parecia um canteiro.

Ajoelhado na praia, ele pôs-se, então, a desenhar de cabeça. Ali, onde estavam os pés, duas torres avançadas de proteção. No lugar da bunda, a fortaleza do príncipe se ergueria desafiando o inimigo; do lado esquerdo, a capela; do lado direito, a sala da guarda; no fundo, o labirinto dos impossíveis amores; mais atrás, onde ele descansara a cabeça, o tesouro sagrado. Precisaria também um grande fosso e, depois do fosso, uma estrada, não, várias estradas. Uma floresta também, daquelas mágicas com selvagens monstros com pele de casca de árvore. No meio da floresta, poderia ter um pavilhão para caçar.

Do lado de trás, onde saía aquela porta pequeneninha desfarçada na muralha, tinha também um caminho que subia um morro coberto de pedras chatas. Tinha que ir devagar, por causa dos cactos que são delatores do ancião que mora na caverna e se alimentava de carne crua. Quando o tempo está muito quente como naquele dia, é pior, já que ele bebe sangue de gente desavisada. Tem uma hora que a trilha passa debaixo de uma raiz enorme de uma árvore que parece muito velha. É lá que dá para fazer uma parada, jogar a gamela amarrada em um barbante ao longo do tronco que desce lá pra baixo e trazer de volta uma água fria, fria.

O príncipe naquele dia estava com seu cavalo branco, que se chamava Hidalgo. Ele tinha decidido que ia raptar a princesa das garras do seu pai, que tinha trancado ela, porque ela gostava do príncipe. Era por isso que tinha mesmo que atravessar o morro do velho e desafiar também os gritos das águias. Mas ele era puro de coração e tinha o amuleto bordado de fios de cobre que ele apertava no peito, debaixo da armadura que tinha sido do seu avô, o rei da Tessália. Daí, ele foi foi, foi e teve uma hora que ele até lutou contra uma cobra com cabeça de raposa e rabo de porco. Lá no alto, ele parou para ver quanto ainda faltava para chegar nos domínios do maldoso conde. Faltava muito ainda, mas Balduque era muito forte e, em alguns dias de cavalgada, ele estaria aos pés da torre do cárcere de Focaccia, sua amada.

Mas as artimanhas dos espíritos controlados pelo carniceiro da montanha eram muitas. Os danados assoviaram e Cláudio virou-se. Foi, então, que ele viu suas terras, lá longe. Foi tão horrível, que ele se ajoelhou e chorou de ver seu castelo completamente destruído, tudo: a capela, a sala da guarda, o tesouro.

E a fortaleza arrasada, com forma de bunda marcada na areia da praia.

De acreditar e de pensar

Gabriel estava pensativo diante do tríptico. Em uma das faces, um homem saía de um caixão, quase sorrindo sob a bênção de Deus que, do outro lado, distribuía pães e peixes para uma multidão. Mas no centro estava o problema: ele agonizava numa cruz. Vai ver ele só aprontava, fazendo de conta sempre, e as pessoas descobriram.

Adiante tinha uma outra cena. O barrigudo flutuando numa folha. Devia estar sonhando, gordo daquele jeito! Devia ser isso, porque, na moldura, tinha o mesmo Deus dormindo debaixo de uma árvore, cochilando na frente de um monstro cheio de braços ou de uma flor estranha.

O museu tinha outras brincadeiras. Por exemplo, um alfabeto todo desenhado na pedra. Não dava para entender nada, mas na plaquinha ao lado estava escrito: Alah (o nome do cara) todo poderoso. Era um super-homem que nem capa e músculos tinha. Só letras estranhas, como cobras se entrelaçando. Bizarro.

O setor dos deuses, vários deuses, um para cada coisa, era mais legal. Tinha o padeiro, então, tinha que ter o deus do pão; tinha a professora, então, tinha que ter o deus dos livros; o enterro da avó, e o deus da morte; o pai e aquele deus que comia seu filho, quando ele fazia besteira.

Gabriel não era bobo nem nada. Ele sabia que os museus eram como histórias. Museus eram de mentira. Mas ele gostava de ficar pensando. Porque quando as pessoas pintavam era como se Deus ficasse mais de verdade, verdades de mentira, claro, mas de verdade. Não era como nas rezas que eram só verdades e, cada vez que parecia mentira, daí ele achava que Deus ia ficar bravo. Era melhor nem pensar. Mas também por isso, ele gostava dos museus e de ficar pensando.

Pensando que Deus de rezar é legal porque é meio de bolso. Já Deus de museu só tem em museu.

Pensando que quando a gente tem o Deus de rezar, é para acreditar; e os deuses de mentira, é para pensar.

Céu

O cortejo se arrastava e fazia muito sol. O suor que descia em pérolas sofridas diluía-se nas lágrimas de alívio. Até as pedras do caminho rangiam sob as botinas.

Pedro estava lá também, tropeçando com os outros. Esforçava-se para o silêncio em grandes suspiros.

Mas tinha um gato sorrindo entre os túmulos. Tinha também uma planta sapeca abraçando uma estátua velha. E uma palavra apagada numa lápide, o casaco cheio de raízes da tia Eleonora, a cruz embainhada numa lata de lixo, a bola de gude no bolso furado e aquele monte de gente estranha, velha, velha, velha. Aquela lá com cara de funil, o outro com uma baleia na barriga, a dona do mercadinho com a vassoura no bigode e a avó cantando em falsete. Tudo isso dava vontade de rir e, cada vez que ele sorria, Pedro lembrava-se que era pra chorar. Então, ele olhava para o sol bem forte, muito tempo. Um tempo ele ficava bem sério e até lacrimejava.

Mas toda vez era a mesma coisa, porque tinha um gato com uma espada enorme cutucando uma baleia. Ou uma bruxa barriguda escrevendo no céu. De nuvem.

Quando acabou o enterro do primo, ele voltou para casa e chamou o Célio para brincar. Mas o Célio não estava. Nem depois naquele mesmo dia, nem no dia seguinte.

A mãe, então, explicou que era porque o Célio tinha morrido e que, quando a gente morre, tem enterro e tudo. E também não volta mais, nunca mais porque vai pro céu.

Pedro correu para o quintal e chamou Célio no céu. De nuvem.

Chovia

Chovia na cidade. Chovia na panóplia.

Numa calçada molhada tinha um coração rebolando e tossindo sangue pela aorta esgoelada. Lentamente, grosso, o líquido encarnado escorria no chão, bebendo os detritos, desviando das gimbas, penetrando as frestas. O fluxo hemorrágico singrava então, para adentrar, guloso, no bueiro. Nas palhas que secavam na grade enferrujada, o sangue respingava sua tinta viva.

No escuro, os glóbulos boiaram no esgoto pardo. A jornada foi longa, tenebrosa. A cada esquina, as enxurradas entravam desesperadas, carregando as folhas suicidas do verão. Lá embaixo, a emulsão podre de lama salivava o sangue diluido. Na central de escoamento, a lavagem dos intestinos da cidade afluía sem parar.

No cenário inteiro, aos quatro cantos, muitos músculos solitários pulsavam, sob a chuva. Nada nas ruas desertas e, aos poucos, o asfalto, o concreto, os gramados regurgitavam sangue, e os esgotos transbordavam seus eflúvios.

Quando a última gota de chuva despencou, um último filete de sangue esvaiu-se pelo asfalto.

Na grande cidade, armadura pretenciosa, a carne apodreceu, estéril. O sacrifício findou, escoando o script pelo esgoto.

Efemerídeo

Essa é a história de Mike, o louva-deus. Ele morava numa cidade grandona, cheia de tijolo sujo e céu congestionado. Mas assim mesmo ele tinha lá seus nacos de felicidade.

Mike nasceu órfão, num tronco de carvalho debruçado no muro de uma casa, entre o rio largo e a avenida ruidosa. Seus primeiros passos ele deu ali mesmo, no jardim, passeando suas antenas ainda trôpegas pelos vidros. A casa pertencia a um aposentado reverendo, que pela manhã inspecionava seu jardim florido, cantando de improviso. Foi assim que Mike teve sua iniciação musical.

Quando, mais tarde, o louva-deus espreguiçou suas asas, sem querer, ele foi alçado por uma brisa fria e zarpou do jardim. Atônito, Mike viu o jardim, a avenida, as ruas, desfilarem ao bom prazer do vento. Quando finalmente ele conseguiu estabilizar suas palmas nervosas, Mike percebeu que ele podia voar. Esse foi a segunda grande lição da vida do louva-deus. Feliz da descoberta, ele foi-se, livre dos luxos e refluxos do sopro que vinha do rio.

Quando cansou, Mike tratou de pousar. O bairro ainda despertava, quando o inseto aterrissou no parapeito de uma porta, entre uma floreira de gerânio e uma luminária de bronze que fixava seu olho de ciclope na calçada. Mike beliscou vagamente um broto que despontava por entre as fissuras da parede e matou a sede no orvalho. Finalmente, ele ajeitou-se, observando a agitação que começava alguns metros abaixo.

Os homens gordos se aninharam entre a porta e a rua. Eram três negros de peito inchado e um contrabaixo também obeso. Curioso, Mike ficou ali.
Algum tempo depois, começou o concerto. À capela, os cantores de rua entoaram a ladainha e ritmaram seus sorrisos arreganhados, batendo com as mãos. O pedestres, curiosos, amontoavam-se ao redor do trio. E Mike, ali, imóvel, hipnotizado pelos tenores do Senhor.

E quando a vida parecia deliciosamente ganha, Mike teve o terceiro grande ensinamento de sua vida. Terceiro e último. Foi quando ele avistou Anabelle, uma formosa louva-deus, piscando seus longos cílios de prata. Mike soltou a voz instantaneamente, aguda, límpida, romântica, magnética.

O resto do dia, Mike e o trio de blues encantou os curiosos e a linda Anabelle, louvando a Natureza de efêmera constância.

E quando a noite manchou o Ocidente, Mike finalmente entregou-se ao amor da bela, até perder a cabeça na paixão canibal de Anabelle.

Azulão

A escassez era tanta, tão miserável o terreiro, tão doída a roça que Severiano da Tábuia nem fum.

Caipora esparramava-se no chão leproso, acerca das taperas, dos cupinzeiros e do esturrico que desvalava do morro.

E lá onde as nuvens branquelas descansavam no horizonte da lida quente, era a chuva desenganada que já não sabia chorar.

Lá pelas onze da manhã, Severiano, de olho bronco na terra, voltava para casa para abrigar-se. Muito quente o dia, muito seco e muito igual a todos os outros. Arrastava a chinela, fazendo trilho no pó e cantando a novena do santinho. Bem baixo no vento, desafinado que só.

Tinha um pau fincado no açude lameado. Lembrança de outra fartura a marcar o nível da bênção do céu. E no pau, tinha um azulão cantando.

Severiano, apoiado na enxada, encarou o pássaro. O bicho encheu o peito de orgulho e soltou um longo pio, primeiro agudinho, depois cheio de gorgorejos. Severiano sorriu de satisfação. Demorou a cantoria de azulão, exibido, e a observação do sertanejo, com muito gosto.

Depois, teve lá uma curupira de pé troncho, alguma coisa que fez sinal. Ninguém não viu a danada, mas o bicho parou de cantar e voou. Severiano também apeou do concerto e deu de ombros para o intermezzo.

Azulão cantou, Severiano apreciou. Na caatinga tem disso, às vezes.

Circunvoluções

Com um pincel na mão e uma palheta de cores abraçada contra o coração, ele iniciou sua volta ao mundo. Num passo vazio de intenções, tateando ao sabor dos humores e a cabeça enterrada no peito, ele percorreu muitos lugares.

Na primeira circunvolução, em cada canto, ele chorava uma única gota de tinta. Uma única cor virgem. Roxo aqui, vermelho ali, amarelo, azul cobalto, turqueza e céu, verde rio camuflado, rosa tez, céu da boca e cicatriz, ali, ali, ali.

Logo depois, ele continuou rodopiando pela terra. Um pouco mais rápido, um pouco mais preciso. Mais esperto também. Assim, em todos os lugares, as lágrimas de cor eram como pupila e iris, gema e clara, picada de inseto e vermelhão. Uma cor dentro da outra. Branco com preto, verde com roxo, turqueza e verde, mar com espuma, leite e nata, pistilo púrpura e pétala de fogo.

Ele não cessou sua órbita terrestre depois dessa segunda viagem. Na terceira, ele já estava calejado de experiências e horizontes. Foi indo ao redor do mundo soluçando outras tintas, outras cores. Complexas, caleidoscopicas manchas nas nuvens, nos cimos, nas sarjetas e leitos. A palheta aos solavancos, o pincel em riste, ele pintava o mundo em miríades de cometas.

Vijou muitas outras vezes, muitas voltas ao mundo ele deu, atomizando o horizonte em fogo cruzado. Pintando, pintando. Diluindo licores essenciais em sua palheta e esporrando mandalas da ponta de seu pincel. Em todos os lugares, de um lugar para outro, em grandes cirandas, ligadas, religadas. E quem olhava o mundo de cima, via um novelo intricado de fios coloridos.

Quando ele cansou, quando o mundo que ele pintara estava cinza, mistura de cores em superposição exsangüe, ele parou.

Parou de viajar. Catou o pincel esbaforido, a palheta craquelada, o pincel e a palheta de tantas jornadas, e debruçado sobre um canto de pedra, em algum lugar qualquer do planeta ele traçou.

Antes de engolir o pincel e lamber a palheta, ele fez um círculo e arrojou-se em ceu centro. Como um feto redimido.

Circunvoluçôes II

O pincel vinha cravado na garganta, a boca digeria contrariada um gosto branco de tinta. Seus olhos recém-nascidos procuravam a todo custo fixar-se do lado de fora do círculo que ele mesmo desenhara, mas a gigantesca mancha verde-acinzentada se impunha com a mesma força que o queria ali, estático, involutivo. Como um feto destinado.

Assim começava a sua primeira viagem pelo mundo pintado de cinza. A direção, era o olhar quem determinava, ainda mal-formado, porém atento. Com insistência e desapego ele buscava um ponto fixo, um único ponto onde seus olhos encontrariam o esperado refúgio no mundo de movimentos borrados.

E foi no interior de uma mancha que ele vislumbrou o primeiro ponto. E com o ponto vinha a cor, o primeiro pigmento, um vermelho sujo. E com a cor, mais pontos, milhares deles, com milhares de outras cores sobrepostas e entrelaçadas.
E no interior do traço, a primeira linha. E das linhas, os objetos com suas sombras e seus espectros.

As gotas de cor eram como pupila e íris, gema e clara, picada de inseto e vermelhão. Uma cor dentro da outra. Branco com preto, verde com roxo, turquesa e verde, mar com espuma, leite e nata, pistilo púrpura e pétala de fogo.Como se cada uma delas contivesse as demais, e as demais contivessem também outras tantas cores nunca imaginadas, mas que existiam como possibilidade.

Cada nuance era agora percebida, nada mais lhe escapava ao olhar. Chegara o momento de interagir.

Armado de um pincel e de uma palheta de cores, ele vai rodopiando pela terra, pintando, pintado, em circunvoluções. Muitas voltas ao mundo ele deu, atomizando o horizonte em fogo cruzado. Diluindo licores essenciais em sua palheta e esporrando mandalas da ponta do seu pincel.

Foi indo ao redor do mundo esparramando tintas e cores, complexas, caleidoscópicas manchas nas nuvens, nos cimos, nas sarjetas e leitos. Roxo ali, vermelho ali, amarelo, azul-cobalto, turquesa e céu, verde-rio camuflado, rosa-tez, céu-da-boca e cicatriz, ali, ali, ali.

A palheta aos solavancos, o pincel em riste, ele pintava o mundo em miríades de cometas. Em todos os lugares, de um lugar para o outro, em grandes cirandas, ligadas, religadas. E quem olhava de cima, via um novelo intricado de fios coloridos.

Assim, apareceu uma lágrima de cor, no canto esquerdo do olho. Uma única cor virgem. Um verde puro. Mais tarde ele chorou as outras também, as que existiam e as que nao existiam, uma por uma, como se o seu corpo estivesse impregnado de pigmentos. E num passo vazio de intenções, a mão abandona o pincel, e os braços, a palheta de cores. Ele nao mais pintaria.

Fabiola Llussa

Enquanto isso

Enquanto isso, lá no País d´Oc, um bebê nascia, filho de pai tropeiro e mãe poeta. Era o segundo, e sua vocação foi definida no momento exato em que ele abriu os olhos molhados sob o rosto observador da mãe: o pequeno seria trovador.

Parte de sua educação foi dada aos solavancos, nas viagens do pai. A outra metade de sua iniciação foi provocada pela mãe que exercitava no menino a capacidade de retratar em lágrimas, sorrisos e silêncios os cenários sempre renovados do comércio do pai.

Aos quinze anos, o adolescente já estava maduro no seu ofício e, bandolim a tiracolo, partiu no lombo de uma mula com o destino temperado pela chuva dos caminhos, o opróbio dos ricos e o suspiro das princesas.

A despedida da família foi tímida. O pai, na soleira da porta, abençoou o filho, dizendo: “Vai, filho, aonde te leva o vento.”

A mãe, apoiada no seu ombro, verteu dois soluços, declamando: “Cultive o amor, filho, o amor pelo amor, filho”

Assim viajou o trovador, pelo País d´Oc e além. Muitos ventos açoitaram sua nuca, muitos amores transbordaram a garganta também. Ele seguiu, com o pai tropeiro no pulso, a mãe poeta na alma, por toda a vida e além.

Enquanto isso, aqui, os homens colocam os desígnios do homem na proveta. Sem vento a desfolhar o coração.

Fúlvio e o pinho

Todos estes anos, de manhã, de tarde, de noite, na chuva ou no sol, na felicidade ou na preguiça, ardendo de frebre ou dormindo como um justo, Fúlvio tem vivido.

Quando abria os olhos, sacudindo a poeira dos sonhos, lá estava o mundo nem sempre igual, nem sempre diferente, como antes e como seria depois. Ele também estava lá, um pouco mais vivo. Como seu guia lá fora, um pinheiro banal que ele plantara um dia. A rotina de olhar para o verde corajoso, pela janela dava a Fúlvio a necessária força para permanecer náufrago na vida.

Mas o que esse homem comum sentia antes de afogar-se na noite, antes de dormir, era uma certa náusea. Numa pausa de conformado desespero, turvava-se-lhe o futuro. Fúlvio debatia-se então e agarrava-se nas bóias do passado. E à medida que os anos passavam, elas se esfacelavam em mil pedaços esparsos.

O pinho crescia, passava já do telhado, com vivacidade renovada. Fúlvio desperto era um com ele, até quando seu vulto na janela se dissipava à noite.

Uma noite, Fúlvio sonhou com um mar poluído de objetos desinfetados pela maré. Tinha de tudo: baldaquins, sanitários, gargantilhas, marquises, escapulários, rostos, fígados e apêndices, pagodes despedaçados, pavimentos espelhados, praças aflitas e praias virgens, ciclopes mudos, marfins ocos, caudas de fogo, olhos marejados, suspiros eternos, meteoros cinselados, dores de prazer e muitos outros dejetos do passado.

Uma noite, na última noite, Fúlvio viu passar o pinho que fora um com ele.

Chez Michelle

Michelle era uma mocinha muito sonhadora, daquelas que observam a vida com encantamento e surpresa. Se o café caía na mesa, ela regava as flores marrons que desabrochavam na toalha engomada. Se a chuva babava na janela do quarto, ela acalentava as gotinhas com seu bafo fértil e, até quando a tia desconhecida morreu e virou nuvem, Michelle soprou bem forte para dissipá-la no céu.

E mesmo mais velha, bem mais velha, ela continuava assim, eternamente virgem.

No dia de seu aniversário, Michelle fez uma grande festa na sua casa. Convidou a cidade toda, e todos foram prestigiar as flores que Michelle inaugurava no seu jardim. O canteiro de narcisos era um espetáculo.

Lá pelo meio da noite, Michelle fez discurso, abriu os presentes rodeada por seus queridos amigos, distribuiu sorrisos e poemas e puxou uma ciranda que rodopiava em espiral pelo gramado.

Mais tarde, quando a música ninava as namoradas e namorados, foi servida uma enorme musse de chocolate com geléia de damasco e marzipã. Depois, jogaram críquete entre os pinheiros, esconde-esconde no sótão e também juras de amor, escondidos entre os arbustos. Teve também a hora da meditação, dos abraços coletivos, da fila do chá de alfazema, do batismo dos narcisos do canteiro. E caça aos morangos recheados de caramelo, oficina de borboletas de papel crepom, contagem das estrelas, declamações apaixonadas e mais música, mais dança, mais canto madrugada adentro.

Até a lua, essa desavergonhada, perdeu a hora naquela noite da festa de Michelle, e quem não foi também adorou porque o sol, galante consorte, despontou mais tarde no dia seguinte.

Ainda hoje

Baby olhava com atenção o móbile em espiral. De tanto olhar, adormeceu ninado pela confusão de cores. Mais tarde, o azul penetrou-lhe o peito e saiu vermelho pela boca. Derramaram-lhe uma paz leitosa pela garganta, diluindo a dor da fome. E lá atrás do móbile, mamãe esparramava uma purpurina rosa das dobras da boca que debruçava-se no berço. O arroto saiu pardo com bordas esverdeadas. Mamãe abriu-se de prazer e deitou uma onda nos olhos de Baby, que desabrochou em estrelinhas cintilantes. Elas voavam, dançavam na luz e deu sono de novo.

Um dia, Baby acordou e nem chorou. O pato conversava com o urso. Era um papo difícil e, quando perceberam que estavam sendo encarados, gargalharam. Baby riu com eles, agitou as mãos e alcançou o móbile pelo rabo do macaco. Um grito trovejou lá longe e Baby berrou. Mamãe carregou o macaco, o urso, até o pato e o berço ficou sem móbile. Ainda bem que tinha os raios do sol fazendo cócegas no nariz e a mamadeira descendo do teto.

Quando Baby descobriu o pé, foi uma alegria. Ele brincou  muito e, cada vez que o danado escapava, caindo no fundo do berço, ele suspirava, abanando a mão. Até que ele cansou, dormiu e, quando acordou de novo, uma baleia branca boiava na sua frente. Ela era boazinha e até arrepiou-se toda, quando Baby aqueceu-lhe o dorso. Quando mamãe chegou para cobrir a barriga de Baby, a baleia foi embora. Daí ele chorou até se engasgar.

Teve um dia que Baby esperneou, chutou, fez força que até saiu um pirulito do bumbum. Mas ele conseguiu se virar e cair num gramadinho cheio de flores coloridas. Foi tão gostoso o piquenique na fronha que Baby nem chorou. Dormiu assim mesmo, de bruço.

Hoje, Baby ainda ri do macaco, do urso e do pato. Baby ainda gargalha com a baleia branca nadando nas flores bordadas. Hoje, que Baby não é mais Baby e que mamãe é quase um baby.

Benê do rio

Chovia naquela manhã e Benê não se deixou levar, como tantas vezes antes, pela preguiça. Ele saiu, de machadinha na mão e trouxa no ombro, com o olhar plissado de quem enfrenta a escuridão.

O caminho descia para o rio emoldurado de um verde selvagem. Seguindo seu curso, Benê não precisava decifrar as estrelas nem a trajetória do Sol. Na magra costa de pedras ele caminhou léguas e léguas. Dormia ao relento e o múrmurio das águas povoava de confissões os sonhos de Benê.

De manhã, ele comia peixe e morangos, e lambia o cálice dos juncos. Fartava-se e seguia em frente. Benê dialogava com o rio, registrando o secreto testemunho do tempo caudaloso.

Serpenteava as margens cada vez mais espessas e distantes. Vez por outra, nos aclives polpudos, a machadinha golpeava o mato em cicatrizes precisas. Ninguém traía a solidão voluntária de Benê.

Quando surgiu o primeiro barranco vermelho, a primeira roça, os primeiros cascos na terra batida, o homem decifrou os sinais. A jornada chegava ao fim. Algumas crianças nuas na água deram-lhe boas-vindas e odores ruidosos, lá longe, anunciavam a cidade.

Foi ali mesmo que Benê descansou a bunda no chão, no cinturão verde que sufocava o progresso. Mais tarde, ele pôs-se ao trabalho. Com a machadinha talhou uma casinha, com a machadinha abriu um alpendre florido ao redor, com a machadinha construiu sua nova vida.

E o tempo passou. Muito tempo passou. Tempo de mais. Tudo cresceu. A cidade esparramou-se sepultando o rio, o mato, o riso das crianças.

Mas o tempo esqueceu Benê, passou ao lado, deslizou sem vê-lo.

Lá no meio da cidade abafada, tem um jardim esculpido a machadinha e uma casinha simples. Tem Benê que respira  tempos de antigamente e as memórias do rio.

As migalhas de brioche

Era longa a jornada. A poeira de muitos ventos e imagens em turbilhão turvavam o olhar. Eles pararam para descansar, soprar, organizar os frangalhos de nuvens que se acumulavam nas asas. Fito, o pardal, e sua gangue fugiam.

Tudo por causa de umas migalhas de brioche.

Era primavera e os frufrus da corte voltaram a mobiliar o parque. O frio tinha sido longo, mas os narcisos que emolduravam os canteiros anunciavam uma temporada de piqueniques e apetitosas festas. Naquele desastroso dia, Fito saiu cedo para sua vistoria matinal e se surpreendeu com a agitação do parque. Em grande aparato, as alamedas ornadas de tafetá vermelho conduziam para uma enorme tenda acolchoada de tapetes profundos, fofos pufes, mantas  bordadas e crianças obesas esparramadas nos quatro cantos. Numa mesa que circundava a construção, cataratas de doces, pães e guloseimas brilhavam ao sol. Fito salivou e ordenou o poso no galho escondido de um grande carvalho que sombreava o palácio de seda. Os mordomos de libré safári, armados de grandes leques de vime, circulavam em vigília. Fito apanhara muitas vezes e sabia do risco de uma incursão inconsciente. Por isso ele aguardava, sereno, a abertura das festividades para, no meio da confusão gulosa, ordenar a rapinagem.

Ao toque de trompetes agudas, uma ruidosa procissão aproximava-se, precedida de Sua Majestade, a rainha Maria Antonieta, tronando em seu luxuoso baldaquino egípcio. A festa ia começar.

Fito conhecia o cerimonial: a rainha batia com seu escarpim no tablado central, e os nobres precipitavam-se no grande bufê com ganância e selvagem soberba. Era o momento de descer da árvore e infiltrar-se nas rendas em louca agitação. Foi um regalo, uma comilança da qual Fito e sua turma não desfrutavam havia muitas temporadas. Quando os papos finalmente davam sinais de lotação completa, os pardais da corte ousaram aproximar-se da rainha, deitada em uma grande almofada. Com modos ela comia um brioche dourado. Os gatunos aguardavam o clímax do banquete: a migalha final.

Quieto, eles observavam a mastigação educada e quando o derradeiro pedaço se aproximou da boca da rainha, Maria Antonieta deitou um olhar piedoso ao chão. Lá estavam os pardais, sonhando com uma bicada no brioche de Sua Majestade.

A rainha levantou a voz, e a corte silenciou repentinamente. Foi como se o tempo tivesse paralisado seu incontornável curso.

“Coitadinhos. Querem pão, damos-lhes brioches.”

E num esfarelo magnânimo, a rainha jogou por cima dos pardais tementes, misericordiosas migalhas.

Até hoje muita confusão existe por causa do caridoso gesto.

O resto da história é bem conhecida. A rainha foi decapitada, a corte caiu e a revolução coroou democráticos comedores de brioches.

Mas foi assim que tudo aconteceu, por causa de uma migalha de brioche e uma trupe de ousados pardais.

Fulano, Beltrano, Sicrano e o tomate

Aqui finda a história ao contrário.

Por isso, ela começa pelo fim, quando Fulano morreu. Ele morreu porque escorregou num tomate e aconteceu de, naquele dia, Sicrano adormecer guiando sua caleche. O coração não suportou o susto. Fulano tinha ido para a feira e Sicrano voltava do baile em homenagem ao príncipe de Macau na casa do duque Beltrano.

Fulano ia para a feira a pé, atravessando a rua, andando pela calçada, descendo a escada. Sicrano sonhava com a bela que lhe prometera reencontros, com a mãe e também com as contas a pagar. Beltrano, por sua vez, bebia para esquecer a solidão do palácio deserto, a desfeita do príncipe, os fuxicos da traição da esposa.

Fulano não dormiu na noite que precedeu seu fim. Ele trabalhava na casa de Beltrano, que contava com sua inventividade culinária para impressionar os convidados em suas festas. Sicrano chegara cedo, para investigar os convivas, localizar sua presa, armar um plano de sedução com calma. Já Beltrano se esmerava, recitando com fingido improviso as polidas boas-vindas que endereçava aos seus nobres hóspedes.

Sicrano passara a tarde no cabeleireiro arrumando a peruca, Fulano orquestrava os preparativos, e Beltrano assinava os mimos preciosos que encomendara para agradar a sociedade.

Fulano foi empregado por Beltrano dois anos antes de sua última festa. O pai de Sicrano estava falido e dispensara Fulano com pesar. Beltrano era um ambicioso nobre rural, que acumulara uma fortuna na suas terras férteis. Sicrano desde jovem colecionava as conquistas amorosas, sem preconceitos nem foco. Fulano, graças a suas viagens com o príncipe de Macau, quando jovem aprendeu todas os temperos do Oriente, todas as iguarias, todos os segredos da alquimia gastronômica oriental.

Sicrano nasceu no castelo de sua mãe, enquanto seu pai se ocupava de fantasiosas embaixadas. Beltrano era filho único, esperança da linhagem, mas feio de doer. Fulano foi abandonado na porta de um convento, num cesto de feira.

Aqui começa essa história. A história do conto que escorregou no tomate.

Ciranda

Lá na praia, tinha uma sereia namoradeira a se bronzear.

Com a cabeleira desaguando nos seios, ela ressonava e era como as ondas do mar. O sol púbere lambia-lhe o ventre, o vento afoito soprava seu gozo e até a areia colhia o ócio da bela.

Você sabe amar, morena, sabe gargalhar e se esbaldar?

A sereia responde de lá e com a boca molhada de sal, se põe a cantar. Cadência lenta, a linda balança a cauda, ritmando o despertar.

De todos os lados, Janaína atrai barcas e jangadas náufragas. O horizonte finda de velas arreadas e os homens pulam. Mil braços tremelicam, confusão, atropelo no mar. A sereia canta e é de encantar.

Mas o que é isso, o que vem de lá? Vamos dar uma espiada. Um velho coroca, de carruagem, bastão de caramujos e olhar de fogo, cruza. Ele vem de hipocampos gigantes roubar a sereia que cala o mar.

Espia só. Pescadores e marujos abanam, rastejam e choram. Ninguém entende nada. Nem sinal da bela, homens no tormento, oferenda pilhada.

Foi lá na ilha de Itamaracá, e dizem que virou ciranda de dançar.

Fome de voar

De tanto voar, de flor em flor, beliscando a chuva, no embaraço das nuvens, arf-arf, ele pousou cansado no topo do telhado. Muitos dias de calor e fome depois, o passarinho já tinha esquadrinhado todo o jardim e puxado a aventura até as fronteiras do asfalto, tintim por tintim. Nada de comida, a natureza murchara como numa invasão de gafanhotos gulosos, pilhada, humilhada, snif-snif, triste, muito triste.

Mas o estômago colado não deixava o passarinho apiedar-se da desolação que o cercava, e reclamava a barriga num ronronar eloqüente. Era preciso pensar, encontrar uma solução ou exilar-se e migrar como tolos patos e outros qüenqüéns. E foi como abrir uma grade que grita, neurônios grudados a desengruvinhar.

Após de muito matutar, o passarinho finalmente encontrou a saída e respirou aliviado, aleluia! O jeito era aproximar-se do viveiro, do xilindró, jogar um blá-blá-blá no cárcere e assuntar uma sobra, uma esmola. O passarinho foi, então, bater à porta dos veteranos condenados que nem cacarejaram com a chegada do esquálido tico-tico.

O passarinho sorriu, seduziu, contou piadas e até ensaiou um canto desafinado, mas os periquitos histéricos deram de ombros: nem um pio de compaixão. Ele tentou argumentar, prometeu, implorou até um longo chororô, mas nada, nadica de nada.

O passarinho, mordido de ódio, não se acovardou e alçou um vôo exibido com muitos frufrus e tititis.
E assim planando, o passarinho esqueceu o não-me-toque e o jardim de marré de-ci.
Assim bailando, o passarinho nem Tchum: mais vale voar do que um prato para ciscar.