Tag Archives: Calypso

O que é do povo é classe

Nunca haverá de ser diferente: quem cria para as massas não pertence às massas. Quando muito, nasceu na mesma condição da maioria. Quando muito, mas ainda, raras vezes.

Há quem goste de usar argumentos falaciosamente fascistas para explicar o fenômeno: “vamos dar para o povo o que é bom” como quem diz “o povo não sabe o que é bom”.

Outra alternativa é desprezar eventuais diferenças de realidades e fazer “o que funciona e sempre funcionou”. Criação simples no mais puro espírito “repete e grita que os burros acabam entendendo”.

Outros fazem pesquisas de imersão, etnográficas, safáris e outros choques culturais que tais. Ajuda a entender, a aceitar na melhor das hipóteses.

A tônica, no entanto, em qualquer desses “caminhos” é temperada inapelável e muitas vezes inconscientemente por uma palavrinha cabreira: preconceito.

O preconceito de achar que “se é de muitos, não presta para mim” ou simplesmente o preconceito de pobre, de preto, de quem fala errado, de quem come errado, de quem se veste errado.

Preconceito não se combate com informação nem bem intencionadas pesquisas que só servem quando muito para combater nossa ignorância.

Um bom truque é despir-se do gosto. É apreciar sem julgar. É tentar comungar. Abrir o coração e inutilizar a cabeça. Funciona e é muito mais gostoso.

Fui convidado para a gravação do 4 DVD da Banda Calypso em Goiânia.

Não pode ser a toa que eles são a banda mais popular do Brasil como apontou a pesquisa da F/Nazca amplamente divulgada.

Eu já era um fã sincero da extraordinária trajetória deles.

Mas tinha que ter alguma coisa além da minha admiração pelo modelo de negócio que subverte totalmente os inflexíveis esquemas de promoção e distribuição de música, sem gravadora, sem padrinho, sem crítica e – até ontem – sem apoio da mídia, que a Calypso prega com enorme sucesso.

Tinha que ter algo que ia além da minha simpatia por tudo que torce pela subversão das regras instituídas para beneficiar poucos e assaltar a maioria (já compararam o preço do CD no Brasil com o de outros países, inclusive pobres como nós?).

Tinha que ter algo além da convicção de que o direito autoral é uma regra morta e incontrolável justamente porque ela é um dos maiores cabrestos ao desenvolvimento criativo do país. A Calypso assim como outras incríveis bandas de Brega e Forró namoram oficialmente com esquemas de distribuição alternativos (deve existir pelo menos meia dúzia de bandas Calypso covers por aí vendendo mais CD do que muito figurão da MPB).

Tinha mesmo. Tinha a vibração do publico galvanizado com o show, tinha a simpatia extrema da Joelma, seu sorriso, sua graça, seu jeito criança, sua elegância sensual, tinha as guitarradas do Chimbinha e seu transe com a platéia, tinha a produção impecável, de gente grande, sem nada a dever a ninguém.

E tinha eu, freqüentador empolado dos festivais de música clássica, balançando a perninha, rebolando acanhando e cantando “doce mel, doce mel”.

A revolução silenciosa que a mídia não vê

Deu na ilustrada que saiu dia 21/07: a banda mais popular do Brasil não tem gravadora, não está na lista das mais vendidas oficiais, não é hit das rádios FM e só recentemente apareceu na TV. Ela se chama Banda Calypso.

“Ah sim, claro, eu conheço! É aquele grupo que faz a tal da música Brega, sei sei!”.

Novela das oito, audiência alta, em todas as camadas sociais, regiões e idades. Qual é a música de abertura? Maria Bethânia cantando Copacabana.

“Claro, a grande estrela da música popular brasileira cantando o grande sucesso imortal!”

Não me interessa analisar a música da Calypso ou dos outros que compõe a maior fatia do PIB musical brasileiro (Bruno e Marrone, Zezé di Camargo e Luciano, Calcinha Preta, Aviões do Forró, Roberto Carlos, etc).

Também não me interessa avaliar a cantoria da Bethânia ou de qualquer outro monstro sagrado brasileiro.

Mas algumas palavras da segunda interjeição chamam a atenção: “popular” e “sucesso”.

Maria Bethânia é popular? Copacabana é sucesso?

Não é o que essa pesquisa diz. Não é o que se vê na real, na rua, nos shows, no gigantesco intercâmbio (já que não se pode propriamente falar de comércio) de música popular brasileira. Maria Bethânia não é popular e tampouco Copacabana é sucesso.

Onde é que a mídia se inspira portanto? Quem é que a mídia atinge? Contradição: a mídia se inspira de sua vetusta discoteca e atinge a população que não compra mais discos da Bethânia há décadas. Nem dela nem de ninguém.

Enquanto isso, nas redações londrinas dos jornais brasileiros, a crítica despreza os fenômenos populares ou os julga com velados preconceitos.

Enquanto isso, nos departamentos de marketing americanos das empresas brasileiras, os executivos copiam eventos internacionais e trazem astros para suas “experiências de marca” no Brasil.

Enquanto isso, nas criações holandesas ou argentinas das agências brasileiras, os profissionais escolhem os topos das listas como garotos propaganda ou compõem jingles medievais para martelar o consumidor “tapado, burro e primitivo”.

Enquanto isso, a população segue ouvindo – e adorando – a banda Calypso.

Tem algo de errado. Deve haver alguma coisa muita errada. E agora opinando: errados somos nós, não o povo.

Há sim, no país, uma revolução silenciosa em curso. Enorme, nunca vista e nunca imaginada. Uma revolução que desestabiliza as estruturas, sociais, jurídicas, culturais, econômicas. Uma revolução que é “A” saída para a injustiça social perversa do país.

Uma revolução que traz exemplos brilhantes, ícones sagrados, como o Chimbinha da Banda Calypso, ontem vendedor de peixe na feira no Pará, e que conseguiu romper todas as barreiras, sem mecenas, sem crítica, sem padrinho político, sem propaganda tradicional, sem mídia. Com seu talento, suas intuições, sua inteligência e sua fé.

E como eles, muitos outros, milhares, quem sabe milhões, que trabalham, sobrevivem, têm sucesso, nessa “margem” hoje muito maior e mais produtiva do que o centro alienígena ocupado pela mídia, pelas marcas e agências de propaganda.