Num filme de Méliès, um carro desgovernado desce uma ladeira, em direção a uma casa. O carro acelera cada vez mais e adentra a residência, derrubando as paredes para o espanto de uma família na sala. Na seqüência seguinte, o mesmo fato é filmado de dentro da sala onde a família conversa, quando repentinamente as paredes são derrubadas pelo automóvel.
Era assim que esse precursor contou a história. Dois pontos de vista justapostos, com o tempo revivido duas vezes. A linguagem cinematográfica evoluiu para preservar de alguma forma a passagem do tempo, e a cena hoje seria contada com alternância dos dois pontos de vista.
A cena de Méliès parece esquisita, ou na melhor das hipóteses, uma narrativa, assim contada, poderia ser vista como uma moderníssima revolução de algum cineasta pirado afim de criar frissons cerebrais. Mas para as pessoas que assistiram a estréia do filme, o filme não parecia bizarro, nem moderno, apenas justo e compreensível.
As pessoas não eram mais ou menos burras ou instruídas. Foi a linguagem que evoluiu, as pessoas nem tanto.
A propaganda não tem muito espaço para discussões de linguagem. Experiências de narrativas não são muito bem vindas porque incorrem em riscos de falta de compreensão. E tudo o que a propaganda não pode se permitir é não ser entendida pela maioria. Talvez por isso, a linguagem publicitária está sempre pegando carona no vácuo dos sucessos inquestionáveis de todas as outras formas de comunicação, em particular o cinema e a literatura.
Talvez por isso também, a propaganda sofra de paralisia experimental. A termo, isso aprofunda o hiato entre a linguagem da rua e a publicitária. Não é necessariamente porque os clientes anunciantes são conservadores, ou os criativos simplórios, que a propaganda não evolui na velocidade do cinema por exemplo. É também e principalmente por falta de espaço de experimentação livre, sem compromissos comerciais.
E se os festivais fossem esse momento? E se os mal fadados fantasmas cumprissem exatamente esse papel?
Um concurso que premia aquilo que está na rua é, no limite, desnecessário, se considerarmos que seu sucesso já foi avalizado por aquilo para o que ele foi contratado: ajudar a vender. Não seria mais legítimo e principalmente útil se os festivais que tanto massageiam os egos, fossem deliberadamente abertos à experimentação de linguagem, sem hipocrisia?
Talvez assim, um dia, a propaganda pare de chover tanto no molhado e evolua. Talvez, um dia, aqueles que querem experimentar fiquem menos frustrados e legitimamente recompensados.