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O consumidor é mais humano do que queremos

Antes, comprava-se para ter ou para usar. Na primeira alternativa, o confortante sentimento de posse constituia uma perspectiva mascarada ou explícita de investimento. Na segunda, o consumo era motivado por necessidades funcionais ou psicilógicas.

Mas consumir reveste-se de mais baixas motivações, subvertendo aquelas primeiras e transformando-as em justificativas ou alibis. Ter ou usar não passa de retórica expiatória.

Consome-se por uma míriade de motivos reais, cuja profundidade do impulso varia e que pode nos ensinar como e onde apertar os interruptores da sedução publicitária.

Compensação existencial é comprar para preencher lacunas de tempo ou de tempos estúpidos. Compra-se de tudo sem correlação entre uso e troca, preço e benefício. A satisfação dá-se na experiência, é momentânea e fugaz.

Compensação produtiva é comprar para satisfazer merecimentos presumidos. Compra-se porque ganha-se e nesse caso, o preço é fator determinante: o poder de se saber apto a pagar é a motivação principal.

Compensação humanística é comprar porque faz bem para si, para o outro, para a sociedade, para o futuro. Essa compra hedonista ou altruísta é filosófica, transcendente, messiânica. Aqui, importa a palavra e o exemplo antes do benefício funcional e emocional.

É importante entender o consumidor, seus valores, seus sonhos e frustrações. Mas o modismo de debruçar-se sobre esses elevados objetivos engana e constrói catedrais de lógica sedutora que flutuam em nuvens intelectuais. O comportamento do consumidor flutua e varia muito mais do que querem crer nossos edifícios conceituais. Antes de sobrevoar em fascinantes viagens, que tal aterrisar um pouco nas inconfessáveis motivações do pobre coitado que chamamos de consumidor?

O contexto do consumidor

A sociedade de consumo é um alvo fácil. Ainda que fosse possível isolar comportamentos recorrentes, padrões universais e valores comuns entre os consumidores, a imagem de maquiavélicos empresários de HQ – manipulando e escravizando através de suas invenções diabólicas as mentes tolas dos indivíduos – é tão ingênua quanto os consumidores arquetípicos de certos manuais de marketing para neófitos.

O fato é que, de um lado, existem marcas que se esforçam na formação de uma personalidade, uma essência, valores e qualidades; de outro, pessoas que não fazem a menor questão de respeitá-las e tampouco amá-las. Se as marcas são volúveis e influenciáveis, permeáveis a mudanças de cenários competitivos ou de comportamentos, os consumidores, nem tanto. Vale dizer, ainda, que, por mais clusterizada que seja a análise dos perfis de públicos, antes de serem grupos, os consumidores são únicos.

Assim, quem uma marca ouve? A quem ela fala? Ao indivíduo ou aos clusters de indivíduos? Aqui reside a mais prosaica das contradições com a qual devemos lidar, ao evoluir numa sociedade de consumo: embora a mensagem seja emitida a grupos aparentemente estáveis de consumidores, ela é recebida, decodificada e interpretada individualmente por indivíduos que são personalidades distintas. Mas a regra do “comunique o mínimo denominador comum” nos salvava. Existem sim sentimentos comuns a todos os indivíduos, e são esses sentimentos que devemos despertar.

Mas a regra perde a cada dia sua eficiência óbvia. A sintonia dos indivíduos está hoje mais sensível, mais tensa, mais crítica não pela falta de “mínimo denominador”, mas pelos excessos de “denominadores comuns”. Assim, mesmo que nos esforcemos para estudar os consumidores muito além de cortes sociodemográficos – como padrões de consumo, por exemplo – ainda assim, estamos longe de agrupá-los em “denominadores comuns” mais precisos. Os indivíduos classe x, da faixa etária y, região z e com padrão de consumo w podem ter valores e impulsos completamente diversos. E esses valores e impulsos são também importantes e relevantes na opção por uma marca. O consumidor xyzw, porque é fervoroso seguidor de uma seita, pode optar por uma marca, da mesma forma que o consumidor de outra classe, faixa etária, região e padrão de consumo, simplesmente porque ambos possuem outro “denominador em comum” : o amor às doutrinas da tal seita.

Na sociedade em que vivemos – complexa, de infinitas redes de “denominadores comuns” entre os indivíduos – como gerir uma marca? Há quem prefira provar as soluções sugeridas por Ray Bradbury em “Farenheit 451”: já que é tão difícil agradar a todos, já que é tão difícil gerir as reclamações isoladas, mas não menos dramáticas, por uma opção de mensagem pretensamente ofensiva, melhor seria destruirmos todo o conhecimento e, em decorrência disso, a capacidade crítica dos indivíduos. Esses são os luditas da sociedades de consumo.

É nesse ringue aparentemente incontrolável que as marcas evoluem. Por isso, estuda-se tanto o consumidor. E se as técnicas pseudoestatísticas dos estudos quantitativos, as pseudoanalíticas das qualitativas ainda conseguem apontar esperanças de caminhos, o gestor de marcas tem por obrigação, missão e compromisso observar além. Quando as ferramentas falham, rateiam ou limitam, só nos resta observar. Ficar atentos a outros padrões de consumidores, a outros comportamentos e valores. Aguçar os sentidos e crer na intuição, para encontrar outros e originais “denominadores”.

O artigo de Myra Stark é um interessante documento que, de forma organizada e didática, tenta trazer à tona alguns desses novos contextos de consumo no mercado americano. E, apesar do nosso mal-assumido complexo brasileiro de identidade, muito nos conforta encarar aquele mercado assustadoramente complexo e vigoroso como uma bem-aventurada proveta de ensaio. Boa digestão.