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Chora menos e vai trabalhar

O planejamento, em uma agência de propaganda, é um frisson. Seu glamour é lustroso e, embora não rivalize em prestígio com o da criação, é a Meca das inteligências, pretensões e egotrips above the line.

E, como se deve, a minúscula corporação dos “Planejadores” é unida, corporativista e fuxiqueira. Assim, apesar de defender sua preocupação integradora, a bandeira é um discurso retórico. Na prática, uma enrustida dor de cotovelo – contra o cliente e a criação – realimenta uma separação das atividades, responsabilidades e brilhos. Nasce assim uma série de regras, preceitos, teorias, definições: “planejador é isso e não aquilo”, “deve fazer menos isso e mais aquilo”, “exige mais isso e menos aquilo”.

Na prática, planejamento é a atividade mais difusa e barbapapa de uma agência de comunicação. Ele não atende mas atende, não faz mídia mas faz, não cria mas cria. Não produz mas produz. Não acompanha mas acompanha. Ele não é cliente mas é, não é agência mas é. Esse nada que o caracteriza é precisamente sua força. Só mesmo metáforas podem definir seu papel, sua importância.

Eduardo Lima, com o chapéu de Presidente do Clube de Criação de São Paulo, talvez tenha criado a mais singela e inspirada imagem do que é um planejador na Conferência de Planejamento: é um mateiro, que entra com facão na selva, abrindo picada para a criação (perdida por definição).

Se o planejador é um sertanista, um cão farejador, um atirador de elite, um espião, o Presidente do Clube de Criação de São Paulo tem razão quando percebe tanto bebê chorão ranheta vituperando, demarcando territórios e parindo definições.

Conhecimento não é search engine

Dizem que a memória cultural das pessoas não passa de 5 anos. Isso significa na prática, e na média, que as referências das pessoas se limitam ao que aconteceu no mundo nos últimos 5 anos. Em outras palavras: nada.

Se essa aterradora constatação for verdadeira, então de que adianta toda a tecnologia? De que adiantam os entusiasmos com o mundo moderno?

Esse mundo aí, no qual esperamos viver cem anos, é oleaginoso e paira na superfície ao sabor de prazeres passageiros. É o mundo dos verbetes tagueados, do conhecimento resenhado, dos tutoriais no YouTube, das traduções digitais. Parece que a tecnologia, de tanto preocupar-se com simplificações, simplorificou demais.

Nessa vibe, podemos redefinir o que é criação. Antes diziam-nos que não havia criação sem repertório, sem conhecimento. Para resolver essa parada, resolvemos colocar todos os repertórios online. Fácil? Quem disse? Está tudo lá, nas profundezas da grande rede. Mas como nos rios poluídos, é a merda que emerge. É a merda que se consome, ávida e cegamente.

A memória cultural das pessoas se nutre da superfície. A criação, idem.

A rede não é criativa

A coletividade é uma beleza. Ela parte do pressuposto de que muitas pessoas trabalhando juntas, ligadas por uma rede, acabam produzindo resultados melhores. A democracia é assim. As pessoas votam em seus representantes que constituem os nós da rede que se alimenta dela. Uma linha de montagem é assim também. As pirâmides foram construídas assim.

A Internet não inventou o princípio. Só aplicou essa lógica à informação, mas redes elétricas, de distribuição de água, irrigação, estradas, esgoto, desde os romanos, já aplicavam o princípio.

Mas, assim como existe uma correlação direta entre quantidade de conexões e qualidade do sistema, não existe nenhuma correlação comprovada entre essa lógica e a qualidade dos fluxos. Ou seja, uma rede azeitada, funcionando, garante fornecimento de energia, de água, de carros e o despejo de cocô. Uma Internet garante o fornecimento e despejo de informação. No entanto uma rede não garante, por exemplo, que a qualidade da água seja boa, muito menos da informação.

Por outro lado, não existe correlação direta entre rede e criatividade. Se podemos acreditar que não existe criatividade sem repertório e inspiração – nem conhecimento, nem humanidade – no entanto, um milhão de pessoas limitadas conectadas e trabalhando juntas produzirão resultados também limitados. Dez milhões de pessoas burras trabalhando juntas vão criar coisas burras, pois é da lógica da rede, também, o mínimo denominador comum. O produto de uma rede de colaboração nunca será o máximo denominador comum.

Acreditar em colaboração coletiva não significa desacreditar na capacidade individual. Quando o assunto é criar, a união não faz necessariamente a força.

Ainda haverá, sempre, o criador isolado, só, sem celular nem internet, sem Wikipédia, sem YouTube, sem bibliotecas sofisticadas, sem rede.

O quantum leap criativo não se dá como produto do browser obsessivo atrás de referências e pedidos de socorro.

A criação ainda é o produto da reflexão desplugada e do solilóquio referenciado por um mar mental de repertório, influência e musas.

Criar não é ter idéias

Dizem que Leonardo da Vinci passou 30 anos pintando a Mona Lisa. Ele jamais vendeu nem se desfez da obra que ficou como uma espécie de herança espúria para o rei da França, que abrigara o artista em seus velhos dias. É possível imaginar o barbudão de pijama, pela manhã, admirando a tela inacabada, tomar do pincel e retocar  mais uma vez o sorriso perpétuo. Tá legal, da Vinci foi demais. Aleijadinho se esculhambou inteiro esculpindo seus profetas. Muito também?

Minha amiga é pecuarista. É uma grande artista também. Mas quem disse que ela fica atrás do computador, do telefone, tomando seu chá indiano, fumando sua piteira de marfim, acariciando seus galgos suecos. Ela calça suas botas (de cromo alemão), toma seu cajado (de jacarandá da Bahia), escolhe um dos muitos chapéus corsos e vai para o pasto, pra cocheira, pisa na bosta, toca a boiada.

Criar não é conceber e terceirizar, é conceber e fazer. Porque a criação é um organismo carente que evolui, que se transforma.

Criar não é ter idéias, é fazer as idéias acontecerem. E para isso é preciso conhecer, estudar, inventar. Técnicas, artesanatos, improvisos.

Se Beethoven não fosse pianista, ele não teria composto a nona. Se Rodin não fosse fundidor, ele não teria feito o pensador. Se tantos incríveis diretores de arte não fossem fotógrafos, ilustradores, estilistas, editores, designers, eles só teriam sido medíocres photoshopeiros ou razoáveis art-buyers.

O clube de criação tem piscina? Então por que se chama clube?

Embora o trabalho criativo permaneça o mais exuberante de todos os serviços oferecidos por uma agência de comunicação, embora ele continue sendo a entrega que coloca em contato uma marca com seus consumidores, o paralelismo das diferentes áreas há muito se quebrou.

Até poucos anos atrás, um briefing gerava UM planejamento, UMA mídia que gerava UMA criação. Havia certa equivalência de recursos alocados. Um cliente novo exigia uma estrutura nova em todas as áreas de forma mais ou menos padrão. Assim cresciam as agências: uma fórmula projetava as estruturas.

Mas há tempos que esse raciocínio não responde mais às exigências dos clientes nem responde mais à eficácia de uma estratégia de comunicação.

Antes porque a atividade de marketing se sofisticou a tal ponto que o trabalho de pré-e-pós-entrega de comunicação parece desproporcional ao tamanho da entrega. Parece, mas é a realidade. São muitos testes, muitos ensaios, muitas aprovações, muitas discussões, muitas idas e vindas, muitas apresentações com muitas pessoas, muitas mudanças de briefings, muitos muitos rodeios que nem sempre levariam a muita entrega, ou criação. E não cabe aqui questionar, mas constatar.

Mas, mais importante do que isso, a entrega ou criação também não se limita a um certo formato outrora pasteurizado. Não existem mais poucos e eficientíssimos pontos de contato com os consumidores, mas uma miríade deles. Isso exige, portanto, uma cultura multidisciplinar daqueles que fazem essa entrega, os criativos. E multidisciplinariedade não significa que nego só tem que conhecer rap africano, literatura tcheca ou moda islandesa, além da última seleção do anuário do clube de criação.

Significa que o criativo deve sair de sua crisálida protegida e entender de mídia e quais as mais adequadas e rentáveis, para o cliente e para a agência. Ou que ele tem que se interessar pelo que o consumidor pensa, sente e expressa, e para além das câmaras do gás de coxinha. Por exemplo.

A mesma multidisciplinariedade também tem que descer a ladeira do prestígio criativo e o janota do atendimento, o esquisito do planejamento e o nerd do mídia também têm que curtir rap africano, literatura tcheca e moda islandesa e cessar de desprezar a última seleção do clube de criação.

E, assim, não haveria mais criativo na criação, mas criativo em todo lugar. Não haveria entrega só na criação, mas entrega em todo lugar.

E não haveria sequer clube de criação nenhum, que, como o nome indica, é clube, portanto subentende um apartheid criativo, proeminente e pretensioso.

Steve Jobs goza e faz gozar

Quem nunca ouviu uma música em torniquete, mais e mais e mais, sem parar, até sufocar-se de prazer? Ou repetiu em desatino uma palavra, um grunhido, uma risada, um gesto, ao infinito?

O êxtase é sair do seu estado, cortar-se da cronologia, fixar o presente fora do corpo e da mente. E para Kundera, viver é o difícil balanço entre a busca do êxtase e seu controle porque seu gôzo eterno é mortal.

Há também sofrimento, pena, trabalho na busca e no controle do êxtase. Viver não é brincadeira.

A verdadeira criação é movida pelo êxtase pessoal e comunicá-la é a tentativa, magicamente imprevisível, de transferência desse estado fora do estado.

Pode haver êxtase em tudo. E o orgasmo é sua manifestação mais sublime, mas o êxtase é um prazer prosaico e pode estar na contemplação obsessiva de um buraco no chão.

Pode estar também na produção de um produto, de um texto, de um comercial de 30 segundos, de um supérfluo banner na Internet.

Mas o mundo das marcas, com poucas exceções, é mecânico, cheio de modelos, cabrestos e tolhe, acoberta, policia, vulgariza, nega, assombra ou massacra, o êxtase criativo que transporta e faz nego comprar para além da razão, para além do coração, para além da sanidade.

O título sumiu (por André Kassu)

Esse não é um texto saudosista. Não cabem aqui lembranças de um velho tempo. É simplesmente uma constatação. O título anda sumido, escanteado, não globalizado, talvez. Eu não sei quanto a vocês, mas um bom título é sempre mágico de ler. O comentário roubado, aquilo que você jura já ter pensado, mas não foi capaz de traduzir. Curtos, em dois tempos, três tempos até. Os raciocínios inteligentes que mais parecem conceitos de tão bem pensados. E por que não, a maldade, a observação precisa das mazelas humanas?

Mais uma vez, não existe aqui uma tentativa de negar os novos tempos. É só uma homenagem, resgate que seja, de uma grande arte: o título. Eu sei, todo mundo quer pensar no viral de um milhão de views, na escada rolante “moonwalk” que desce em marcha a ré tocando Billie Jean. É natural. Mas a existência de um não deveria matar o outro. O gorila da Cadbury não enterra o Michael Jordan 1×0 Isaac Newton. Assim, como nem a mais brilhante das ações pode ser considerada superior aos títulos e textos do Neil Ferreira (ou alguém duvida que a morte do orelhão é uma ação genial?).

O título é tão injustiçado que quando ele é bom e o layout é ruim, ele morre. Mas quando ele é mais ou menos e a direção de arte é bonita, ele se perpetua. Pobre coitado. Fadado a não depender nem de si mesmo. De ser chamado em pedidos de “vamos evitar aquelas gracinhas ou piadinhas”. De ser confundido com dizeres. De ser constantemente substituído pelo seu primo abaixo, o subtítulo.

O fato é que nas revistas e nos anuários, o título tem andado de lado. E é injusto. Fazer título é exercitar a arte da síntese. É mais do que nunca, saber cortar palavras. Tanta coisa genial já foi escrita que cada detalhe faz a diferença. Páginas e páginas de títulos esquentam a mão, nos fazem pensar na importância de vírgulas, pontos e pausas.

Já ouvi gente que, para menosprezar o título, diz: eu penso visualmente. Ou, eu penso no conceito como o todo. Ou, eu penso global. E aí temos uma infinidade de anúncios com o logo  pequeno no canto direito, uma imagem e um conceito com interrogação. Tudo bem. Você pode não ser um tituleiro nato, mas por favor, saber escrever é básico. Ou deveria ser. Eu tenho visto pastas de redatores com muita intimidade com ações e pouca com as palavras. Gente que certamente tem  dificuldade para escrever um texto cabine de rádio (e sim, esses jobs existem).

Eu sei que gosto de título. E gosto do texto. Cada palavra escrita pelo Fábio Fernandes (leia os diálogos dos filmes e veja se tem alguma coisa ao acaso por ali. Releia o texto da crise), o olho atento do Eugenio Mohallem, a fina ironia do Wilson Mateos, a mistura de loucura, ódio e formulinha zero do Edu Lima. A maldade angelical do Roberto Pereira, a inteligência e emoção do Olivetto, tudo do já mencionado Neil e a nostalgia que me bate ao ler o texto do Pelourinho do Nizan. O “experimente ser magra” do Peralta, “a história de um homem feliz” do Luiz Toledo e o Renato Simões que escreve muito antes de existir a categoria técnica do anuário. Escrever não deveria ser uma preocupação dos redatores, apenas. “Você bebe e não ganha nada” foi criado pelo Marcello Serpa. E matou legiões de redatores de inveja. Sem falar no André Laurentino, que saiu da direção de arte para a redação, escreveu livro e o melhor texto sobre filho único que eu já li.

O título me faz uma falta que o twitter não preenche. Ainda que o twitter prove que as palavras continuam importantes.  Os tais 140 caracteres viraram o refúgio dos tituleiros, como disse o Rodolfo Sampaio. Só que tudo vira briefing e a disputa é pelo RT.  E são tantos títulos a todo instante, que o critério e a magia se perdem.

Pode parecer antigo ou fora de moda. Pode não ser o jeito mais fácil de ganhar Leão ou fazer sucesso nos comentários anônimos. Mas um bom título é e continuará sendo sempre excelente propaganda.

(Link relacionado: Um bom título vale mais que mil imagens)

A propaganda dos fominhas e brucutus

Toda agência de propaganda tem atacante fominha, lateral que dribla pra trás, meio de campo perdido e zagueiro brucutu. Para quem assiste de fora, a falta de entrosamento é a alegria dos comentaristas. Mas para quem está em campo, a bola está em jogo e não tem replay.

Como no futebol, o esquema de jogo é quase sempre caudatário do talento de alguns. A vitória é dos craques, a derrota é dos técnicos.

Toda agência de propaganda tem criação, planejamento, atendimento e mídia. Todas, inclusive as modernas, inovadoras, hypadas, desesperadas, desconectadas ou desencanadas.

Como no futebol, na propaganda existem regras do jogo.

A regra do nosso jogo é a seguinte: trabalhamos para clientes que comandam uma grana que devemos investir em veículos de comunicação que escolhemos em função das audiências que eles geram.

Não mudou muita coisa desde tempos imemoriais. Ainda temos a grana dos clientes, ainda trabalhamos com veículos de comunicação e ainda temos que investir neles.

Mas uma coisinha singela está diferente: as audiências não são mais dadas. Elas agora estão voláteis, independentes e incertas. Elas estão hoje em um bilhão de lugares e amanhã estarão em um bilhão de outros lugares. As audiências foram alforriadas.

Novas regras se impõem e novos times também.

A mídia não pode mais ser fominha e encastelar-se atrás dos dados. A criação não pode mais ser brucutu e achar que só Jesus salva. O planejamento não pode mais dar drible pra trás com sua sapiência do consumidor de ontem e o atendimento não pode mais dar dribles para trás da sua cautela.

Com essa audiência liberta, não dá mais para prescindir de esquema de jogo e não dá mais pra fazer gol sozinho.

Mais importante que criar idéias (seja lá o que isso algum dia significou), a gente tem que aprender a criar audiências e para isso, talento e umbigo não bastam.

“Não se preocupe viu”, to muito por dentro do “geral” das “coisas”

Todo mundo concorda que o briefing é a matéria prima do trabalho de uma agência. Também concordamos que em alguns casos ele também é usado como guilhotina,  filtradora ou frustradora, do trabalho criativo. É portanto consenso que um bom briefing deve inspirar sem castrar. E obviamente, quanto melhor a matéria prima, melhor o produto final, tanto em termos de qualidade quanto de esforço.

Se o dever de um briefing é ser musa, vamos combinar também que a transcrição das necessidades, problemas, esperanças dos clientes não são propriamente a coisa mais importante. Quando muito, compõem o cenário sobre o qual devem-se construir caminhos.

Se o pecado de um briefing é ser inquisidor, acordamos que check-lists não são necessários, desejáveis nem tampouco de-briefings cuja função sempre de empata-foda. Quando muito, pode-se considerar um incentivo ao longo do processo, um apoio moral.

Um briefing deve portanto ser preciso, correto, focado. E idealmente, se mais de um caminho se apresentar, mais de um briefing pode ser considerado.

Briefing todo abertinho ou fechadinho, onde tudo pode ou não pode, tudo é desejável ou não, tudo atende as expectativas do cliente ou não, é inútil, vide preguiçoso, vide brochante.

Um briefing não se escreve, se cria.

Finalmente, convencionou-se que agências de comunicação teriam pessoas mais próximas dos clientes, que estariam “por dentro do geral das coisas” e chamaríamos essas pessoas de “atendimento”.

Existiriam outras, no meio do caminho entre o atendimento e a criação, especializadas em dar foco ao “geral” e em dar vida às “coisas”, e essas pessoas são o que chamamos de “planejadores”.

No fundo, no fundo, é simples. Os “não se preocupe” é que complicam.

A Internet enche que até transborda

Com a Internet, uma nova economia nasceu. Com a Internet, muitas gente ficou milionária da noite para o dia. Com a Internet, a democracia renasceu, e a política e a justiça. Com a Internet, as pessoas estão menos sozinhas, mais participativas, mais poderosas, mais instruídas, mais inseridas, mais criativas, mais, mais, mais.

E também com a Internet, o mundo está menor e mais igual. Com a Internet rouba-se mais, infringe-se mais a lei. Com a Internet o lixo tem seu lugar ao sol, a produção cultural perdeu referências de qualidade. E a produção tout court também. Até nossos valores. E nossa ética. E nossa fé. Com a Internet, ninguém quer mais saber de olhar no olho, nem tocar, nem falar, nem trepar, nem, nem, nem.

Todas as virtudes e todos os vícios: é tudo culpa da Internet.

Tem até uma patologia nova, os internetisícos, que tossem bits. Coitados, ficam doentes se não tiverem um computador, um pad, um celular, uma lan-house à mão.

E tem aqueles outros, os internetofóbicos, que ficam verdes se alguém falar “google”, azuis se ouvirem a palavra “youtube” e explodem só de ver o passarinho azul.

Se pessoas morrem em acidente de carro, não é culpa dos carros, nem das estradas, nem das montadoras. Se as pessoas engordam, não é culpa da gordura, nem da lanchonete, nem do maldito azteca que inventou o chocolate.

Tomara que chegue logo o dia em que a palavra Internet fique obsoleta, careta, saudosista ou bizarra. E que a palavra Criação ou Deus ou Liberdade cresçam e apareçam no tag-cloud.

Todo criativo é uma ilha

Chega uma hora que você engole um ponto de interrogação: será que isso é bom? Será que vão entender? Será original? Será que é o caminho certo?

Daí você raciocina de novo. Elabora o espírito do porto e se veste de mulher do piolho: vão rir na hora certa? E se acharem pejorativo, simplista, coloquial, formal, bobo, imbecil, cretino, estúpido, uma bosta?

É nesse momento que você desiste e apela para o infalível: a iluminação, o talento, de divino direito.

Frissons olímpicos percorrem seu corpo, o olhar voga ao infinito, a cabeleira dança em câmera lenta, e, mãos em súplica romântica, você se olha no espelho, da privada, e diz: “é isso, eu sinto que é isso!”.

É hora de enfrentar o inimigo público número um: a sua convicção, essa devassa, vendida, volúvel e carreirista.

Os caras mal olham e cospem, sem pensar, algo que você nem ouve direito.

De volta à solidão amarga, você se distrai lendo uma bobagem qualquer: uma crônica de futebol, uma fofoca, uma bizarrice, um briefing.

Um briefing que você não entende por definição, acha ruim por princípio (se fosse bom, não precisariam de você), equivocado por natureza (se estivesse certo, você teria que admitir), mal escrito por lógica (afinal de contas onde já se viu?).

Essa é a sua vida. Criar, sobre improváveis caminhos, idéias mal compreendidas de que você tem que se orgulhar para não sufocar.

O mundo seria injusto demais se não houvessem incompetentes por todos os lados.

A Londres daqui não tem a menor graça

A gente aprendeu, a vida inteira, que a educação funciona como uma caixa de ressonância de referências. Como se, ao longo de nossas vidas, fossemos conectando-nos indelevelmente a outros aprendizados, e costurando assim,  nossas próprias referências que não passam, sempre, de recitações colhidas por aí. É por isso que apreciamos, valorizamos e enaltecemos quem tem muitas “referências”.

A gente diz “fulano é viajado, sabe das coisas”.

Dona Conceição, enviuvou e foi ver o mundo. Foi de pacote, ver os cartões postais ao vivo e a cores. Gostou muito e não parou nunca mais. Mas da primeira vez, quando voltou, trouxe muitas recordações. Chamava o povo em casa e contava que a Torre de Pisa era torta mesmo, a torre Eiffel dava enjôo de subir, a de Londres povaréu danado pra cima e pra baixo, sem falar das cantoria nos canais de Veneza e da Via Condotti, ah a via Condotti!

–       Sabe fia, essa Via Condotti que falam tanto. É muito linda mesmo. Linda demais. Mas cá entre nós, assim, não é que eu estou ficando blasé – aprendi essa, que tal? – mas a Via Condotti é mais ou menos nossa Avenida Independência aqui de Bauru, sabe?

Com o tempo, a gente vai sacando, no entanto, que tantas referencias enjoam. Das duas uma, ou a gente não consegue mais achar graça em nada ou embanana tudo. Como o Monsieur e Madame Franck.

Eles estavam aposentados, com um bom dinheiro no banco e sem genro para sustentar. Viajavam muito e mandavam cartões para todos. Mas eles já não eram mocinhos e a gente recebia uma linda foto de Madri com palavras singelas “Paris é inesquecível, salut a tous!” ou de Moscou: “Londres says hello!”.

Do outro lado do espectro, aqui da torre de marfim, a gente gargareja demais nossas incríveis referências. Conectados ao extremo que estamos, perdemos totalmente a capacidade de processamento inteligente das informação. E por processamento, entenda-se criação.

O que é sucesso no e do Brasil? Novela? Samba? Futebol? A banda Calypso? O hip hop, forró e baile funk? Ou se preferirem casos mais chiques, um tipo de arquitetura, um tipo de design, a Bossa Nova? Exemplos emblemáticos da antropofagia de referências. Quando a gente come o que vem de outros lugares, mastiga, cospe, engole de novo, mastiga de novo, faz uma mistura e cospe outra coisa. Igual mas diferente. É assim que a gente construiu nossa identidade tão gostosa. Desse talento aí de introduzir nossas coisas sem preconceito, sem arrependimento, sem vergonha.

Precisamos urgentemente de um tratamento de desintoxicação de referências na propaganda brasileira. A semi-ignorância é uma dádiva para quem tem talento.

Propaganda é um exercício de estilo

Raymond Queneau escreveu um livro chamado “exercício de estilo”, em 1947, que contava a história de um jovem com longo pescoço, portando um chapéu decorado com uma trança. Ao entrar no ônibus, o personagem troca algumas palavras rudes com outro passageiro. Mais tarde, o narrador encontra novamente o sujeito do ônibus que está discutindo com um amigo que lhe aconselha fechar o botão superior de seu casaco.

A história, prosaica, no entanto é desenvolvida em 99 estilos diferentes ao longo das páginas. O exercício é tão rigoroso que não se tratam de interpretações da mesma história, que tentariam por exemplo dar explicações diferentes para o fato (o personagem teria sido zombado pelo passageiro do ônibus por causa do seu pescoço girafesco? Ou teria sido a sua trança exótica que excitou a curiosidade?).

Todos os 99 textos têm idênticos roteiros e suscitam as mesmas indagações. Mas eles são deliciosamente diferentes. E os estilos – e só os estilos – apesar de serem formas, revelam sim ao leitor interpretações muito distintas. O estilo é o único vetor de interpretação, o catalisador da história que não está traçada nas linhas mas delas emana misteriosamente.

Na literatura, a intenção do autor encontra-se muito menos na história contada e mais no estilo que sugere as interpretações do leitor.

O domínio do estilo é a única arte que importa. O domínio da forma de contar é que irá transferir intenção à mensagem.

Embora nem sempre haja intenção deliberada e consciente em uma obra artística, a propaganda é sempre premeditada. E é simples, cristalina, e objetiva essa intenção.

O criativo escreve histórias mas ele se transforma em publicitário quando domina os estilos portadores da intenção (sim, aquela do briefing), diversos e infinitos, mas sempre precisos.

Em tempo, não se pesquisa estilo em pré teste publicitário. E não se pesquisa porque não dá, simplesmente não dá. Morte aos pré-testes!