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“A crença na cultura” de um bobo da corte

Sobre o artigo do Senhor Reinaldo Azevedo “A crença na cultura da periferia é coisa de gente com miolo mole”, na revista Veja de 05 de dezembro de 2007.

Na minha área de atividade, a propaganda: uma matéria com essa voltagem de preconceitos, falácias intelectuais e ofensas pessoais seria, com unanimidade, retirada do ar pelo CONAR, código que regula a decência e ética publicitária. Mas delitos de opinião, na imprensa, são efeitos colaterais da democracia. Ninguém criticaria a livre expressão de idéias, nem mesmo pessoas do calibre reacionário do autor do artigo.

Portanto, só nos resta manifestar-se livremente também.

Meditei longamente, portanto, e tentei encontrar, para além da racionalidade, porque fiquei tão triste. Não tenho a presunção de construir o mesmo tipo de barricadas intelectuais que o autor do artigo. Que covardia inferir sobre a possível interpretação dos ausentes veneráveis para justificar uma opinião!

Não me cabe julgar os valores do articulista, retrógado confesso. Só cabe-me questionar sobre a alternativa sugerida pelo autor. A alternativa ao patente apartheid social que nos assusta tanto e que alimenta o maior de todos os fantasmas: o preconceito.

A alternativa seria dizimar ou confinar os pobres? Como o autor quase se orgulha de ter sido feito com os “silvícolas”? Ao evocar uma certa “seleção natural”, pergunto-me, seria realmente dominante a “sua” espécie? Qual é a tese civilizatória pregada?

Não há muitas respostas no artigo, só subentendidos que tentam inverter óbvias e prováveis acusações à sua infâmia.

Pensando bem, seu artigo, Senhor Reinaldo Azevedo, não é nada além de uma boutade risível, uma acrobacia gauche, uma ilustração medíocre da vetusta inteligentsia conservadora.

O “central da periferia” diverte o povo. Bobos só divertem a corte.

O que é do povo é classe

Nunca haverá de ser diferente: quem cria para as massas não pertence às massas. Quando muito, nasceu na mesma condição da maioria. Quando muito, mas ainda, raras vezes.

Há quem goste de usar argumentos falaciosamente fascistas para explicar o fenômeno: “vamos dar para o povo o que é bom” como quem diz “o povo não sabe o que é bom”.

Outra alternativa é desprezar eventuais diferenças de realidades e fazer “o que funciona e sempre funcionou”. Criação simples no mais puro espírito “repete e grita que os burros acabam entendendo”.

Outros fazem pesquisas de imersão, etnográficas, safáris e outros choques culturais que tais. Ajuda a entender, a aceitar na melhor das hipóteses.

A tônica, no entanto, em qualquer desses “caminhos” é temperada inapelável e muitas vezes inconscientemente por uma palavrinha cabreira: preconceito.

O preconceito de achar que “se é de muitos, não presta para mim” ou simplesmente o preconceito de pobre, de preto, de quem fala errado, de quem come errado, de quem se veste errado.

Preconceito não se combate com informação nem bem intencionadas pesquisas que só servem quando muito para combater nossa ignorância.

Um bom truque é despir-se do gosto. É apreciar sem julgar. É tentar comungar. Abrir o coração e inutilizar a cabeça. Funciona e é muito mais gostoso.

Fui convidado para a gravação do 4 DVD da Banda Calypso em Goiânia.

Não pode ser a toa que eles são a banda mais popular do Brasil como apontou a pesquisa da F/Nazca amplamente divulgada.

Eu já era um fã sincero da extraordinária trajetória deles.

Mas tinha que ter alguma coisa além da minha admiração pelo modelo de negócio que subverte totalmente os inflexíveis esquemas de promoção e distribuição de música, sem gravadora, sem padrinho, sem crítica e – até ontem – sem apoio da mídia, que a Calypso prega com enorme sucesso.

Tinha que ter algo que ia além da minha simpatia por tudo que torce pela subversão das regras instituídas para beneficiar poucos e assaltar a maioria (já compararam o preço do CD no Brasil com o de outros países, inclusive pobres como nós?).

Tinha que ter algo além da convicção de que o direito autoral é uma regra morta e incontrolável justamente porque ela é um dos maiores cabrestos ao desenvolvimento criativo do país. A Calypso assim como outras incríveis bandas de Brega e Forró namoram oficialmente com esquemas de distribuição alternativos (deve existir pelo menos meia dúzia de bandas Calypso covers por aí vendendo mais CD do que muito figurão da MPB).

Tinha mesmo. Tinha a vibração do publico galvanizado com o show, tinha a simpatia extrema da Joelma, seu sorriso, sua graça, seu jeito criança, sua elegância sensual, tinha as guitarradas do Chimbinha e seu transe com a platéia, tinha a produção impecável, de gente grande, sem nada a dever a ninguém.

E tinha eu, freqüentador empolado dos festivais de música clássica, balançando a perninha, rebolando acanhando e cantando “doce mel, doce mel”.

Chega de apartheid

Quando a gente fala de comunicação na Internet, ainda estamos muito viciados. Ainda somos incrivelmente preconceituosos, preguiçosos, covardes e protecionistas. A Internet ainda é assunto à parte, uma espécie de graal ou penico – depende do ponto de vista – da modernidade.

Vejamos a cobertura que a mídia dá ao assunto. Quase sempre se trata de um tema de especialistas, pessoas que só fazem isso e – pior – só sabem fazer isso. E são quase sempre os mesmos que dão opinião. O resultado é que os temas são assustadoramente repetitivos, entrópicos e chatos. Será que ninguém percebeu que não existem “consumidores de mídia”, mas “consumidores de marcas”? E, por isso mesmo, será que ninguém percebeu que não existem “especialistas em mídia”, mas “especialistas em propaganda”? Já está mais do que na hora de ouvir outras pessoas e não apenas e tão-somente os “pretensiosos” especialistas, os voluntária ou involuntariamente “segregados”. Nada contra eles, mas vamos ouvir os outros. Até porque, dessa interlocução, a gente vai descobrir também quem pensa o assunto, quem sabe raciocinar sobre ele e vai desnudar os ausentes e os que enrolam.

Vejamos como os prêmios de propaganda tratam do assunto propaganda na Internet. São prêmios separados, cheios de confusões para dividir as categorias e julgados pelos mesmos “especialistas”, os mesmos de sempre que só fazem isso. É insuportável ver o resultado, pois uma boa idéia é boa idéia, qualquer que seja a mídia, quem quer que seja quem a julga. Isso não significa, é claro, que não deva haver “categorias”. Ajuda a organizar um pouco e a comparar. Só significa que não deveria ter especialistas em Internet que criam para especialistas julgarem, especialistas verem e especialistas escreverem sobre. Ou melhor, não deveria ter só especialistas. Nem em Internet, nem em qualquer outra mídia. Devemos ter especialistas em propaganda e pronto. Ou em criação. E quem sabe, talvez, alguns especialistas em Internet também sejam especialistas em propaganda. E, quem sabe, especialistas em propaganda que julgam outras categorias não sejam assim tão especialistas assim em propaganda, porque não entendem nada de Internet.

Esses dois exemplos periféricos demonstram talvez também – e revelam – que as empresas de comunicação, as agências, não estão tão integradas assim, embora elas tenham o costume de discursar com criativas retóricas sobre o tema.

Mas é possível imaginar que exista um esforço para se rebelar contra o apartheid retrógrado, estéril e mal-assumido que acomete os profissionais do meio.

Playba em baile funk. Relativizando sobre Cidade de Deus.

É possivelmente um dos melhores filmes feitos no Brasil este ano. No Brasil e além. Muitas linhas foram derramadas a respeito de Cidade de Deus. Inflamados manifestos, extasiadas odes à mudança-já e muita, muita catarse de peso de consciência.

Pouco importa aqui a intenção dos autores. Me interessa sim refletir sobre a obra e para além de seu alcance imediato.

Qual é o papel social da cultura? Será provocar tomadas de posição, tumultuar o discurso político, empreender mudanças de atitudes, cobrar o poder público e a consciência do cidadão?

Talvez mas lembrem-se que um filme como Cidade de Deus, ainda que baseado em fatos reais, é uma obra de ficção. E ficção aqui não significa que a história é falsa ou imaginária. Significa que o tratamento cinematográfico, reveste qualquer história de uma “ficcionalidade” indissociável e inerente à própria linguagem. Por mais que ela seja “real”.

Por isso, seu efeito mais profundo tem a exata duração de sua exibição. Buñuel dizia que o cinema é um sonho. O apagar das luzes da sala de cinema é como se fechássemos os olhos antes de dormir e sonhar. A linguagem cinematográfica, com suas edições, inversões cronológicas, mudanças de ponto de vista e tratamentos dramáticos é onírica por natureza. O acender das luzes é o despertar para a realidade, sem cortes, temporal e com um único ponto de vista: o nosso.

É bonito mas tímido transferir aos filmes e obras artísticas a tão pesada carga de mudar algo nas condições sociais do povo. Eles mais facilmente entorpecem do que despertam.

No entanto, existe outra função “social” na obra artística.

Quando ouço um playboy cantando o ódio ao burguês dos Racionais MC em sua Cherokee ou o mano curtindo o glamour fashion de Moby ou Madona, um papel óbvio da obra artística fica estampado: aproximar, criar pontes, laços.
E não é pouco. Para além do primor artístico, dos extraordinários atores, do roteiro brilhante, da fotografia inebriante, é isso que é mais bonito em Cidade de Deus.

Lindo também é ver as filas de Mauricios e Patricias no cinema do Shopping.

Se o Brasil tem ou não jeito, sei lá e prefiro achar que sim. Mas não é Cidade de Deus ou a “verve” entusiasta do Jabor que irão responder nem apontar caminhos. Mas quem sabe Zé Pequeno de camiseta Hang-Ten e Playba dançando em baile funk?